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Full text of "Contos e lendas"

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^arvard CoUeoe ..(Wruru 

c/n ^Jõíemort/of 
Aleixo de Queirc^ Mièeíro ( 
de Sotomq(/or d'^lmeida 

eVa^conceUod 
Gount of Santa ôulalia. 

oftAeCíaéfgfipoâ^ 



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REBELLO DA SILVA 



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i (orro (Ic Caiu O raslollo de Almouiol 
A camisa dd ik-iviI". * 

A iiKiiua corrida de (ouros eru Salvaterra 



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CONTOS E LENDAS 



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REBELLO DÀ SILVA 



CONTOS 



LENDAS 



IntrodnoQão— A torre de Gain— O castello de Almonrol 

A oamisa do noivado 

A ultima oorrida de touros em Salvaterra 



€^ 



LISBOA 

UYRAItlA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E OOUP.' 

67— Praça de D. Pedro — 67 
1873 



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HARVARO C0UE6E UBRARt 

COUNT OF SANTA CULAUA 

COLLECTION 

6IFT OF 

JOHN i, STETSOH, M 

fLBi 1932 



DECLARAÇÃO 

A propriedade Sesta edição pertence a Henrique de 
Araújo Tavares^ súbdito brasileiro. 



LISBOA 

TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA & COMP.» 

67— Praça de D. Pedro— 67 
1873 



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INTRODUCÇÃO 



Oicebam que: in nidnlo meo moriar, et sieoi palma 
mnltiplicabo dies. 

Job GAP. zxiz t. 18 



As pequenas composições, que hoje principiá- 
mos a publicar, são de um homem, que nunca do 
mundo quiz mais do que a tranquiUa obscuridade^ 
que faz de ordinário o supplicio de tantas vaidades. 
Ministro sincero de um Deus de paz, assentou-se aos 
pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno da ve- 
lhice, com a mesma serenidade com que tinha visto 
passar as illusões da juventude, e com que havia 
atravessado os perigos da edade viril. Satisfeito com 
a sua probreza, não invejava (se é que invejou al- 
guma cousa 1) senão a uncção apostólica e a elo-, 
quencia persuasiva dos primeiros confessores da fé 



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6 INTRODUCÇÃO 

nas grandes epochas da regeneração moral do mun- 
do. Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando 
a hora da liberdade estava a soar, reclinou a cabe- 
ça para acordar sem dôr na manção do jubilo, 
pátria suspirada de suas mais doces esperanças, 
única impaciência de uma alma, que longe da mo- 
rada celeste se entristecia captiva. 

A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nas- 
cia de dentro, não aspirava a grangear applausos, 
nem se desvanecia com os respeitos mundanos. Se al- 
guma vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca 
ouviu queixas que a sua bocca se não abrisse para as 
suavisar, nem viu lagrimas, que a sua mão as não 
enxugasse logo. Por isso em muitas occasiões, elle, 
o ancião experimentado, revellava a simplicidade da 
pomba, enganado pelos artifícios dos hypocrites. 
Por mais que o advertissem, a sua caridade não se 
cansava, e embora faltasse a si, nunca faltou aos 
pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam 
a illusão, sorria-se, e respondia: t Louvado seja Deus ! 
Ainda bem que até me deu para esses 1» Dito isto 
cheirava com pausa a sua pitada de esturro, e ia 
catar, ou alporcar os craveiros, até o relógio do estô- 
mago, único relógio que havia em casa, o avisar 
de que eram horas da refeição. Vinha então reco- 
Ihendo-se de vagar, alargava o passeio pela cosinha, 
rondando o ahnoço ou o jantar, não sem se arriscar a 
alguma jaculat(H*ia da tia Brizida, matrona sexuage- 



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INTRODUCÇÃO 7 

naria, que tinha a seu cargo a ecoiK^nia domestica 
e o baixo e mixto império da dispensa e da capoeira, 

A ultima doença do padre Vigário, occasicmou-a 
o zek) pelo serviço d^Aquelle, que nunca fez também 
esperar os desvalidos. Por baixo de immensa cerra* 
ção, caindo a chuva em torrentes, e soprando o ven- 
to, frio e agudo, metteu-se â meia noute ao cami- 
nho da serra, para levar as consolações da Egreja a 
uma de suas ovelhas, que agonisava em desabriga- 
da choupana. A' volta o corpo tremia sacudido 
por uma sesão de febre, e o rosto vmha mais palli- 
do, do que a face de um moribundo. Deitou-se para 
não se tomar a levantar. 

Ferido no seu posto, como soldado intrépido, 
elevou o espirito, abençoou a enfermidade, e bem 
com Deus e com os homens, ao terceiro dia ador- 
meceu para sempre. O Vigário levou todos os bens 
COTisigo. Para se sepultar foi preciso que os visi- 
fihos fiz^sem uma derrama. Mas em compensação 
nunca houve funeral tao rico de prantos e louvores. 
Despovoaram-se os legares da freguezia e dos arre- 
dores para o acompanhar, e quando o corpo saiu 
do presbyterio, o choro de toda a aldeia honrou 
aquellas cinzas tão amadas. Com razão! Não era o 
velho parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? 
Em vida constituirá os pobres seus herdeiro^, por 
isso não deixava de seu mais do que a sobrepeliz 
e a batina remendada, em que o amortalharam, e o 



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8 INTRODUCÇÃO 

crucifixo de marfim, que unira ao coração na derra- 
deira despedida. 

O premio não foi só a coroa de gloria!... Por 
mais desvairada, ou corrompida, que uma geração 
corra ao precipicio, os exemplos salutares sempre se 
lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, 
apezar dos vicios esquecidos nos idilios, não é usual- 
mente a que resiste mais á proveitosa lição das boas 
obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. A 
ama, á qual o Vigário legara somente a memoria 
de suas virtudes, encontrou logo a hospitalidade, 
affectuosa, não de um, mas de muitos habitantes, 
queselheoffereceram para acolherem sua velhice. O 
cão do Pastor, companheiro constante de tantos 
dias de fadiga, também achou quem se condoesse, 
e o fosse levantar da sepultura sobre que gemia sau- 
doso. As pobres alfaias da casa, o breviário usado, 
os poucos livros da estante, e um, ou outro movei 
de seu uso quotidiano, disputados címio reliquias, 
repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje 
mesmo, depois de largos annos, o tempo, que tudo 
gasta, não amorteceu ainda a recordação do sacer- 
dote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos 
cyprestes plantados pelas suas mãos no cemiteria 
da aldeia. 

Este foi o homem e o ecclesiastico venerando. 

Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi 
sem o cuidar, raras, raríssimas pessoas dariam noti- 



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INTR(H)UCÇÂO 9 

cia. Fugia da fama que d&o as lettras, com um cui- 
dado egual pelo menos ãquelle, com que se furtava 
envergonhado ao pregão da sua caridade. Pejava-se 
tanto de si, e por tal receava ser visto, que se a di- 
reita se escondia da esquerda nas esmolas, a penna 
não se occultava menos discreta quando escrevia. 
O padre prior tinha pouco vagar para livros volu- 
mosos. Nos curtos ócios que as obrigações lhe con- 
cediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia 
pelas recordações do passado, enganando assim as 
tristesas do presente, ou ligando em algmnas scenas 
soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da 
mocidade. E em quanto o vento lhe sacudia os cai- 
xilhos das janellas, e a chuva, chapinhando, lhe 
fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas pa- 
pias â luz do ponderoso candieiro de latão amarel- 
lo de três bicos, talvez o traste mais luxuoso de 
toda a sua mobilia. Assim nasceram em um recanto 
obscuro da aldeia estes Contos e LendaSy escriptos 
sem emendas e com admirável rapidez, em lettra 
grada, direita, e garrsrfal, para regosijo dos compo- 
sitores, que cegam a núudo os negalhos demissan- 
ga de certos auctores, muito nossos conhecidos, aos 
quaes Deus não castigue em desaggravo de suas vi- 
ctimas. 

Se o padre Vigário vivesse, ainda não soltava se- 
guramente da gaveta os papeis fechados a três vol- 
tas e meia de chave. Foram precisas repetidas in- 



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10 INTB(H)UGÇÃO 

stwcias para m'os confiar. Poucos mezes antes da 
sifô morte é qae alcancei licença para fazer d'elleso 
uso que julgasse m^s opportuno, com tanto que o 
nome do verdadeiro auctor nunca figurasse t porque 
c dizia elle, não são cousas estas para um sacerdote 
t da minha edade matar o tempo, quando podia rezar, 
c meditar as suas praticas do domingo, ou examinar 
ca sua consciência. Mas não sei como isto é; assim 
tque me sento diante da mesa e pego da penna, não 
«posso valer-lhe, e apesar de todos os protestos, en- 
«tram conmiigo as malditas historias, e não ha resis- 
«tir-lhe. Se fosse crendeiro jurava que me faziam 
flOTixarias.» 

A bruxaria era o que hoje se chama a vocação 1 
A sós commigo perdia de vista as reahdades da vida, 
e quasi s&n o saber, deixava-se arrebatar pelas vi- 
sões do mundo phantastico, aonde antes d'elle já 
se entranharam muitas outras que á admiração saú- 
da como principes da intelligencia. Vingavarse po- 
rém d'este máu sestro (era a sua phrase) pondo de 
lado as escriptas frívolas apenas as acabava e nunca 
mais fallando d'ellas. Rabiscava umas tantas folhas 
de papel (com este desprezo tratava a inspiração!) 
e sem as tomar a ler, juntava o novo caderno ao 
antigo maço. Uma fita de nastro vermelho atava 
tudo. Esquecia-se depois d'este e dos outros até ao 
inverno seguinte, em que voltava ás suas historias 
com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos 



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INTRODUGÇÃO H 

seas segredos, a qaal representava nos serões litte- 
Târios do presbyterio o papel, que a tradição attri* 
l)ue a famosa ama de Motière. Em lisa fé temia ella 
deveras, que o demónio perdesse um dia a paciên- 
cia à força de esbofeteado, e de escarnecido pelo 
Vigário n*aquelles papeis, e que se desforrasse tor- 
cendo o pescoço ás gallinhase frangos, ou chupando 
o sangue aos coelhos, transformado em raposa ou 
em gmete. Nunca acordava, que não errasse en- 
contrar a capoeira vasia! Se é bom estar bem ggbi 
Deus, dizia, não é mau estar em paz com o demónio. A 
casa do presbyterio não era grande, nem espaçosa, 
mas sorria de longe á vista caiada por fora e rodea- 
da de canteu-os de flores. Vestia-se de um tal ar de 
festa, que namorava pela bellesa rústica e logo a 
distancia promettia a hospitalidade que nos dias do 
Prior estava convidando de longe com os braços 
abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na 
coroa de um outeirinho, alvejava por entre a folha- 
gem prateada das faias, cujos troncos Ksos e direitos 
o vento meneava graciosamente. O pateo ajardinado, 
cercado de alegretes, era todo viço e frescura, e 
Ires cepas enroscadas e collossaes, cobriam com a 
sombra de seus pâmpanos as parreiras, aonde ama- 
dureciam na estação os mais formosos cachos de 
moscatel e de ferral-tamara. Em volta da risonha 
morada, penduravam-se as vmhas pelas encostas 
das collinas até ás margens de um ribeiro, toldado 



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42 INTRODUCÇÃO 

de salgueiros e chorSes que se torciam para beija- 
rem a agua. Por entre as vinhas apparecia em ma- 
lhas o verde mais fechado das hortas mettidas entre 
vallados de piteiras, em quanto ao lado sussurrava 
a levada correndo pelas regueiras. Os pomares, co- 
pando-se, encantavam de espaço em espaço os olhos 
offerecendo-lhes bosques fechados, e embalsamando 
tudo em roda com sua fragrância. Subiiído pelos ou- 
teiros, que ondeavam desde a planicie até ás mon- 
tanhas torreadas no extremo horisonte, os troncos 
nodosos e robustos das oliveiras trepavam de socal- 
co em socalco até á cortina de pinheu^os, cujas ca- 
beças, de um verde triste, a viração balouçava lá em 
cima meneando-as entre mormurios ao cau* da 
tarde. 

A ribeka vinha de cima, e ora rebentando enta- 
lada, ora espraiando quasi adormecida, na areia 
alva e fina do leito, despenhava-semais abaixo com 
estrépito, entrando no logar opulenta com as aguas 
recebidas. Aquelles pâmpanos cingidos de arvoredos, 
aquelles valles viçosos de hortas e pomares; os va- 
riados tons que zebravam as encostas dos montes e 
collinas, desde a esmeralda viva dos prados até ao 
louro cendrado das paveias; os rosmaninhos e as 
boninas esmaltando as veigas; o rio precipitando^ 
se aqui, mais adiante correndo manso e limpido e 
depois esperguiçando-se sobre as relvas; de dia o 
sol inundando de luz dourada todo o quadro, de 



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INTRODUGÇÃO 13 

noute Q darão da lua tocando-o de meiga melanco- 
lia, compunham um espectáculo de tanto enlevo que 
a vista fiigia com a vontade e com o coração para 
aquelles casaes debruçados das collinas fazendo nas- 
cer desejos de pedir pousada em aJgum d*elles, para 
vêr romper o luar por entre o arvoredo e de ouvir 
brincar a aragem com os ramos aos primeiros raios, 
brancos do alvor matutino. 

Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se ani- 
mava. As chaminés expelliam o fumo em penachos 
caprichosos; os cepos estalavam no lume; e as 
creanças, como enxame buliçoso, brmcavam de- 
fronte das portas. As mães cosinhavam a ceia, eín 
quanto os velhos e os mancebos descansando do 
trabalho, aguardavam encostados, ou assentados, a 
hora próxima da refeição e do repouso. 

Que saudade causa no tumulto das cidades a 
ideia do pôr do sol nas aldeias 1 N'esta occasião, 
em que a fadiga do corpo como que faz mais dócil 
o espirito, é que o padre Vigário, desembocava de 
uma das azinhagas com o seu Horácio, ou o seu 
Salustio debaixo do braço, è vinha conversar o seu 
pedaço com os anciãos da terra, para saber as no- 
vidades, e espreitar as rixas e (hscordias, afim de 
as compor. Correndo a mão pela cabeça das crean- 
ças, ralhando com umas, afagando outras, informa- 
va-se de tudo, sanava as malquerenças, e conse- 
guia pelo respeito de seus annos e quahdades, que 



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14 INTROBUGÇÃO 

OS moradores da parochia formassem uma só fami^ 
lia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, es- 
tes, mal o viam, voavam em bandos a agarrar- 
se-lhe á loba e ás mãos, por entre vozes e saltos 
eom uma algazarra, que dava rebate a toda a 
aldeia. No verão, nos dias de maior calor, era sem- 
pre certo o prior, á tardinha, debaixo da parreira, que 
lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os ócu- 
los de prata, que lhe escwregavam até á ponta 
do nariz. Lia e passeiava. De três, ou de qua- 
tro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tar- 
taruga e sorvia com delicias uma pitada, deitando 
os olhos pelos canteiros a vêr se alguma flor care- 
cia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava 
punha na cabeça o venerando tricórnio, pegava da 
bengala de canna da índia e castão de prata, e sa- 
bia a tomar um pouco de ar. Era a phrase modes- 
ta, empregada por elle para designar as suas mar- 
chas forçadas de légua, légua e meia, e ás vezes 
duas léguas por montes e quebradas. 

Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimen- 
to com elle, poucos homens vigorosos, na flor da edade, 
poderiam acompanhal-o no seu passo largo e egaú. 
Abordoando-se á bengala por costume e não por ne- 
cessidade, despejava caminho como andarilho mais 
valente. De estatura elevada, secca, mas encorpada, 
carregava sem esforço com o peso de uma velhice 
verde e alegre. Nos olhos cinzentos e vivos brilha- 



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INTRODUCÇÃO ^ii 

va um toque de finura risonha, e a bocca nSuo peque- 
na, mas engraçada, animava o rosto e dava-Uie ex* 
pressão agradável, avivada de constante jovialidade. 
A brandura do ankno correspondia ás promessas 
da physjonomia, e o tracto intimo denunciava as 
pendas d'aquelle caracter, honrado, severo só com- 
sigo, inflexivel e incapaz de se torcer em pontos de 
consciência ou de melindre. Na convivência com o 
padre Vigário, aprendi mais do que me ensinariam 
muitos annos de leitura. Convalescente e magoado, 
devi-lhe a saúde do corpo, a saúde e o conforto da 
alma. 

Este velho desterrado por gosto e eleição sua em 
um canto do mundo, n'uma aldeia ignorada, era 
mais ssibio na sua humildade, do que muitos que se 
pavoneiam de Udos e eruditos. Em dous preceitos 
miicos encerrava toda a sua philosophia: — paciência 
e amor. Com a primeira supportava os trabalhos e os 
revezes sem desmentir a serenidade da alma; graças 
ao segundo, o coração, purificado pelos annos, abria- 
se a todos os sentimentos nobres, e palpitava com 
orgulho memorando as glorias da pátria. Fiado nos 
prenúncios do futuro mitigava a dôr das desgraças 
presentes, com as esperanças de melhor porvir, tão 
crente e enthusiasta, como se acabasse de entrar 
na epochadas illusões. Entendia e applicava o Evan- 
gelho pelos affectos ardentes da sua ahna, abraçan- 
do como filhos e irmãos todos os afflictos e necessi- 



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16 INTRODUCÇÃO 

tados; e pelo anaor, finalmente, não perdoava mas 
agradecia as offensas, as injustiças, e até as calum- 
nias, provações da virtude, não se lembrando d'el- 
las senão para pagar o mal com o bem. 

Horácio, Salusiio e Tácito eram os seus auctores 
mimosos, a par de Camões, de Ferreira e de Sá de 
Miranda. Familiar com os escriptores da antiguida- 
de, e com os modernos de mais nome, seria preciso 
colhel-o desapercebido, e espertar a veia natural e 
espirituosa da sua conversação, para se apreciar de- 
vidamente os thesouros encobertos d'aquella vasta 
erudição e os prodigios de uma memoria em verdade 
rara. As citações acudiam-lhe espontâneas; os ditos 
agudos e as anecdotasencadeavam-se; as scenas e os 
quadros pintados com vivesa admirável, succediam-se 
e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de 
repente os homens e as cousas, que as cinzas dos 
grandes varões de Roma e da Grécia, dos heroes 
de todos os tempos e de todas as nações tornavam 
a juntar-se, a tomar corpo e a animar-se e que os 
viamos mover e fallar como se os estivéssemos con- 
templando nos dias do seu esplendor. As minas de 
Athenas, as do velho Lacio, os monumentos da 
meia edade, e os episódios de epochas mais próxi- 
mas, evocados pelo encantamento irresistivel d'a- 
quella imaginação creadora, como que volviam 
subitamente ao primeiro sêr, apparecendo uns 
em toda a formosura da arte clássica, erguendo- 



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1NTB(H>{J0ÇÃ0 17 

se outros pela religiosa inspiração da arte christã. 

Á noute era um prazer e um exemplo, obser- 
vdl*o sentado na immêiisa pctooAa de couro, com a 
ama á direita «o cão somnoleníto á esquerda, a ve- 
M cabeceado de rocca â cinta e engrolando Pa- 
dres-nossos, o animal piscando os olho^com uma 
érefiMi fita e otitra derrubada. Dos dous companhei- 
ros do sei^o o mais atteoto e sisudo era de certo o 
cãot Medindo sempre o dono com a vista, o mas- 
tan nunca perdia occasião de lhe coçar o focinho 
pelo joelho, quando suppunha o ^sejo favorável. 
O bofete de pau santo e pés torneados, o candiei- 
ro de latSo e a anarchia dos papeis completavam 
o pitoresco painel do lar domestico. Passada uma 
hora, o único que não dormia ^a o Vigário; a sua 
penna continuava a ranger sobre o papel, ao som 
dos roncos assobiados da tia Brizida. Quando as pál- 
pebras se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a 
cadeira, mettia dous dedos na argola do candieiro, 
e recolhia-se ao quarto no meio das recommenda- 
ç5es da ama sobre os perigos do fogo, sobre a falia 
de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos pro- 
váveis; Estas recommendações não se calavam, se- 
não quando a re^iração alta e compassada do ou- 
vinte convenciam a oradora do efifeito suporifero da 
sua eloquência. 

Em um d'estes serões, a que assisti, caiu- o dia- 
jogo sobre não sei qud de nossos reis, e o Vigário 

2 



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18 INTBODUCÇAO 

innocentemente deixou escapar o segredo das suas 
vigilias. A curiosidade de comparsa a escripta do 
solitário com o seu talento de narrar, obrigou-me a 
pedir-lhe, sem attender a desculpas, que me lê-se al- 
guns Contos e Lendas. Oxalá que o leitor seja do 
meu voto. Ainda me não arrependo do que disse d'el- 
les ao auctor, que tremia, como se a minha opimão 
valesse alguma cousa. Não os reputei perfeitos, lon- 
ge d'isso, masasseverei-lhe que seriam talvez folhea- 
dos sem fastio. Arriscaria um juizo temerário?!... 
No seu acanhamento o prí(^ sempre resistiu a apu- 
rar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o 
entregou, pouco antes da suamcHle, foi com a final 
e irrevogável ccmdição de nunca descubru* o nome 
do auctor, se me atrevesse a importunar os prelos 
(assim se expressou) com as puerilidades de um 
velho creança. Possam os Contos e Lendas do padre 
Vigário, cuja ultima vontade estou cumprindo, me- 
recerem alguns momentos de attenção, não por 
si, mas pelas memorias que recordam. Correm já su- 
jeitos ás vecissitudes da publicidade tantos filhos 
espúrios da mesma invenção, que mais esta, entran- 
do no mundo das lettras, não usurpará de certo lo- 
gar, que pertença de direito ás obras primas dos poe- 
tas festejados. Em todo o caso, sem audácia não ha 
fortuna. Lanço-a á correntel... A sorte bôa, ou má 
que faça o resto! 

Y^e, 30 de tei^embro de 1866. 



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A TORRE DE CAIN 



LBNDA DO SÉCULO XI 



De um bOBi irmSo vm mau ohristSo 

O monge eomeçou assim a sua historia: 
No ten^ em que os walis de Córdova tinham 
qnasi todo o reino sujeito, é que succedeu o que 
vou ccmtar. Estava o conde D. Henrique a entrar 
por dias, e com elle vinham boas lanças para o ajiir 
dar^n a resgatar do poder dos infiéis as provincias 
de Portugal. A essa hwa nos castellos da fronteira 
não se descansava de dia, nem de ncÂte; ninguém 
despia as armas; e qu^ luBs^e a maqhS, quer cerr 
rasse a tarde, o darão das almenáras, ou o rd>ate 
das trombetas lâo consentia nem leve reppu^ aos 
defensoí^es da verdadeira lei. Nas ameias, ou no 



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20 A TORRE DE CAIN 

campo da peleja, não se socegava um momento. Os 
melhores castellos ainda tinham a voz dos descri- 
dos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as bellas 
tapadas do Minho e do Alemtejo eram para elles 
correrem os veados, os ursos e os javalis. Do már- 
more de ncj^^s^ pidrâiris arraEncatam a9 columnas 
e as ricas laçarias âe seus paços. Tudo na aben- 
çoada primavera d'este formoso jardim chamado 
Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o 
seu deleite. Nas campinas floridas, em que a lua 
nasce suave como sorriso infantil, e o ceu brilha ra- 
dioso como olhar de virgem namorada, a tristeza 
até parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o in- 
ferno, cujo é, o árabe sensual passava pelo parai- 
so, que nos tinha roubado 1 í^or isso a saudade do 
que perdeu lhe punge tão viva hoje o coração ! . . . 
— E 1^0 havia cavalteiros, que'lhe6 estÉtlasSèm 
ás lánçaS tto ^èitõ, bradando: asta» terrít* é^nossal 
acudiu Martin' Paes; • ^ •' ;í 
' -^Hâviaí; rtedsiígiííu ío frade. ^Más -iram 'poucos. 
Ifdquellès : dias àe eaptivôlnô tcHos inclinavam a 
fròhlè^^fegando de latimos ^sàuleôs- da' charrua, 
gmaá^S por inãbs de escravos. Deus exalte o braço 
victoriò^, (^ nos deu outra tez a terra de nossos 
pâeà, que fek nossos, íà câsa. em que 'abrimos os 
ôJhòs, d cemitério- aonde dermeni os (pie nos ama- 
ram, a atvòre qiié' noí eobriu côm ^ srtntibra ú in- 
^3mcift e a Vi^ce, á a fènW'^e ferve ao pé^do ro- 



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A TORRE DB GAIN 2i 

sal! . . . N'aqu6tte tempo, quando o monrõ passa- 
va, baixavam todos a vista, porque dle erà o se- 
nhor. 

— Mas a terra havia de ser então quasi um de- 
certo, padre? 

— Não. As espigas douravam-se nas searas co- 
mo agora; os campos vestíam-se de relvas e de ar- 
voredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados 
pastavam nos montes. Mas a terra, tão alegre por 
fora, toda era magoa e desconsolo por dentro; por- 
que a terra, em que somos escravos, m^roo que 
seja a da pátria, parece-nos mais só e vasia, do que 
um ermo. A casa alheia, a courella que é àB outro, 
e o fogo accêso na lareira a medo, fazem-nos chorar, 
porque nada d'aquillo é nosso, e hoje, ou amanhã, 
podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como vive ago- 
ra; o que estava morto era o coração do homem. 
Resplandecia o mesmo sol, ocorriam as mesmas aguas, 
nasciam as mesmas flores; porém as creanças lâo 
brincavam por baixo dos pâmpanos da, vinha, cmno 
brincam estas; e a donzella assustada, tremendo de 
se v^ f(Mrmosa, rãú se assratava tranquiUa, domo 
aquella, debaixo ^ amendoeira em flor ouvindo 
descantar o rouxinol por cima da cabeça. O harém 
do sarraceno, aberto diante d'^, como um ab^- 
mo, fazia^a empallidecer. De um momento para ou- 
tro podia ser okigada a acolher entre a desfaonra 
e a morte. 



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22 A. TOBBE DE CAIN 

—Que martyrio Bâo sma a vida assim?! . . . 

— ^Era 1 Foi 1 . . . Mas viveu-se, e por quantos ân- 
uos! .. . O dia declina. Faz-se tarde. Quereis que 
còntímie? 

— Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvi- 
mos, f 

— No tempo que disse, lavrava a discórdia en- 
tre dous ricos Homens nas terras de Ale.m-Douro, 
afirmavam uns quie por anwr dos lindos olhos de 
certa dama, juravam outros que por causa da apos- 
ta de um cavallo. De seus castellos os dous inimi- 
gos, postos defronte, corriam o campo talando vi- 
nhas, pomares e cearas, e mal um se descuidava, o 
outro, assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e 
fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de ho- 
mens d'armâs, ardia a guerra em toda a fúria. Nos 
casaes assolados de ambos, o solarengo ou o pastar 
nunca sal^ se ao anoutecer recolheria os frutos, e 
os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao clarão das 
labaredas, para aterrar algum dos seus assassi- 
íMkdo. 

Por fim o eavalteiro mais velho accomm^eu o pa- 
ço acastellado do contrario, e tomou-o á traição, 
deixando a cabe^ dó senhor cravada nas ameias. 
Aconteceu i$to vesp^a de S. João, por alta noute, 
quando todos feste^vam o bemdito Santo com fo- 
gueiras, cantigas e fõllias. O cavalfeiro tinha um fi- 
lho eum irmão. O filho de edade tenra; o irmão te- 



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A TOME I^ GAIN 23 

mido pela Índole e pelo braço. Entraram e saíram 
os annos assim; a creança fez-se homem; e de par- 
te a parte a aversão das duas famílias cada vez 
crescia mais. O rio que as separava, tingiu-se de 
^ngue por muitas vezes, e os sinos não cessavam 
de dobrar na egreja pelos que morriam. O tempo, 
que tudo gasta (te dia para dia, parecia avivar mais 
áquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro 
assassinado era já um mancebo louvado pela des- 
tresa nas armas e pela prezença gentil a cavallo e 
nos saraus. Chamava-se D. Moço Ansures, e ven- 
do-o passar, esbelto e affogueado da carreira, com 
o falcão no punho, as donzellas sorriam-se e cora- 
vam, e os homens saudavam-o admirando a fiel 
imagem do rico homem morto na véspera de S. 
João. 

D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: 
amo-te 1 Um dia, por desgraça, viu a neta do senhor 
do solar inimigo, e, logo o coração esquecido da vin- 
gança guardou para sempre a doce imagem. O san- 
gue do pae derramado á falsa fé, as malquerenças 
de tantos annos, as promessas da níeninice e da ju- 
ventude, tudo d'ahi em diante se apagou da sua al- 
ma para não vêr outro sol, outra luz, senão a dos 
bellos oíhos, que o tinham feito seu captivo. Segre- 
dos de Deusl Do maior ódio rebentou o mais con- 
stante amor 1 . . . Correram mezes, e o aSecto escon- 
dido saltou aos olhos de todos. Os parentes lança- 



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34 A TOi^E DE GAIN 

ram em rosto âo mwcebo a sua fraqueza, mas a 
paixão pôde mais, que as memorias do tumulo, que 
deixava sem vingança. Por ultimo, cansados das 
guerras dilatadas, os rancores cederam, e o casa- 
mento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas ca- 
sas inimigas. O sorriso de uma dama veiu apla- 
car no sepulcro os que não podiam donnir o sotí- 
no eterno, e os que haviam jurado não perdoar. Apra- 
zou-se para véspera de S. João o ditoso enlace.Se- 
ria propósito, ou acaso? N'esse dia contavam-se 
justamente quatorze annos, que o pae de D. Moço 
de Ansures fora assassinado. 

O homem põe e Deus dispõe ! 

O cavalleh^o morto tinha, como disse, um irmão, 
que lhe queria mais do que á própria vida. Haviam 
nascido ambos véspera de S. Pedro, e escusado fora 
procurar mais do que uma vontade e um affecto nas 
duas almas. D. Inigo Lopes, era o nome do irmão 
mais novo, andava ausente. Acertou chegar de lon- 
ge, quando estavam pregando as taboas do caixão 
do infeliz. Adôr fez de D. Inigo uma estatua, esete 
dias com sete noutesoviram todos jazer deitado so- 
bre a sq)ultura. Parece que a terra, comrado-lhe os 
ossos do irmão, consumia ao mesmo tempo n'elle tudo 
que tinha de humano. Quando rompeu a abra do oi- 
tavo dia, e se levantou, trazia a cabeça e a^ barbas 
brancas como neve. Envdhecéra ali um secuk) em 
sete dias! Nem um lagrknanos olhos seccosl Nem 



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A TORRE ms CAIN Vi 

mnsohiçodo peito mudo. Detxoa sdb^ a campa es- 
pada e aroez, e levou só cOTisigo o punhal. Ao entrar 
ainda fizera o signal da cruz, mas, saindo, Jesus! 
voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam! 

O que fez sete dias com sete noutes D. Inif o sò 
e encerrado na capella? Se alguém o soube foi a 
cova fria. Contavam, depois, que um monge na ul- 
tima noute vira a pedra do tumulo erguida sem lhe 
tocarem, e um corpo crescer da sepultura e a nâo 
do morto apertar a mão do vivo. Blusões t Quem vae 
nunca mais torna. O que não foi fabula, porque to- 
dos o presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com 
o primeiro raio de luz uma rozeira do centro da cova, 
tão viçosa e robusta como se existisse ha muitos annos. 
Que frescas rosas e que lindos botões nos ramosl 
Mas se queriam apanhal-os por devoção, murchavam 
nos dedos ; se tentavam cortar uma pelo pé, o sangue 
cornada haste como se corresse de veia aberta. Em 
cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas v^v 
melhas. E que outros tantos dias se contavam também 
desde que o corpo do valente cavallrâro descera á se- 
pultura trespassado de sete feridas. 

Nunca mais $e soube, ou se fáll<Hi de D. Inigo. 
Dizia-se que sete aniios com mms ámo vagueara 
como per^no,pdos desertos, que Deus pifeou, co- 
mendo das ervas do nxHitd, beèendo da agua das 
nascente, dormindo á^ÚM^leHMneias do teo^. Que 
vida penitente a d'aqudle Santo! Vozes do mmidol 



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ã6 A romE DE CAIN 

o Senhor, que lê nos corações, hamuito que tinha des- 
viado os olhos d'eUe. Com ser christôo nascido nunca 
mais ajoelhara á miz, ou se encommendára á Vir- 
gem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe 
no deserto da Tentação ao atravessar péla terceira 
vez a Palestina. Valha-nos Maria Santissima! . . . 
De repente as areias inflammaram-se em um mar de 
fogo; o ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recor- 
tadas das altas rochas dançaram, crusando-se, mi- 
lhares de luzeiros. Ouviu-se então na vasta solidão 
do ermo um brado immenso. D. Inigo respondeu, è 
o pacto, que ali firmou, foi tão negro, que a lua tor- 
nou-se côr de sangue e sumiu-se, que as estrellas 
esconderam tremulas a sua luz. O christão acabava 
de vender ah a alma ao inferno pela vingança. Des- 
de aquella hora seguiu-o sempre por toda a parte, 
como a sombra segue o corpo, a imagem do kw&o 
assassinado. Ajoelhara ao poder de Satanaz, efle 
que não se prosfrára diante da cruz, e rasgando as 
veias afirmara o juramento. Quando se ergueu soou 
o cantar do g^o por três vezes no espaço, repetido 
pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das 
aguas immoveis do Mar Morto, applaudiram a victo- 
ria do espirilo do mal. O réprobo escMUeceu do pas- 
sado. Ugnâ blaspbemia atroz saltou^lhe da bocca. 
Mas elle que se riã de Deus e do inferno, estreme- 
ceu sentindo fugir4he a terra debaixo dos pés, co- 
mo horrorisada do peso do seu crime. Aos primei- 



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JL TOMIE DE QAÍti ^7 

ros passos o claraò dos relâmpagos ce^-lhe a vis- 
ta. O tempcHral rebentava ao niesmo tempo no mar 
âonâe as ondas se ^i^oLaram coma sendas, no cea 
aonde os trovões fôtala:vam uns apoz ouiros; na t^^ 
ra, que se alma em Voragens, e no deserto, aonde o 
furacão, bramindo, cavava abysmos, e alteava mon- 
tanhas, revolvendo em vórtice as areias. Cedros an- 
tigos, mmo os do Libano, desabavam de pancada. 
As feraá, tknidas que nem cc»*deirôs, acoutavam-se 
siiraiissas nos povoados. Os homens elevavam suas 
orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo 
se £azia humilde e pequeno para a supplica, porque 
lina só o orgulho do culpado? D'ali em diante não 
passou uma faot*a sem elle se despenhar mais e mais 
fimdo no predpicio. Raiava a manlâ mn dia e cur- 
vado sobre a corrente do Jorcfeo, debruçava o cân- 
taro eenchia-o. As ramas das arvores enfezadas tor- 
ciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas pas- 
sadas de distancia caíra um velho desfallecido de 
sede e de iald^. Bastava uma gota d'aqu6lla agua 
psuralhe restifuur a vida. D. Inigo nagou-lh'a entoman- 
do-lhe 4e propoáto o cântaro diante dos o11k)s para 
lhe exac^bar o tormento, dmád dos olhos que; esta- 
vam laragsuQtflo de longe a agua, que o maldito derra^ 
mava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe p(M* 
mak: i chama p^ teu 0eus e pede-lhe una nas- 
cente ajD pò dèí til» O Senhor não accudki com prod^ 
gios aot seá servo^ Quiz ^<ei;pirasse vencedor do 



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28 A TORRE DE CAIN 

inferno. Mas, desde aquelle crime, a sede int^osa 
ateiada nas entranhas do réprobo, nooca mais s6 
aplacou. Os rios e as fontes convertiam a firesqiiidâo 
em fogo para o abrazar. A gota de agua negada 
no deserto pesara na balança do Seiúior largos secm- 
los de culpas. 

Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se 
saber como, â terra em que nascera. Disseram que 
um cavallo da côr da noute, com os olhos todoscham- 
mas, o trouxera em breves instantes da Judeia a 
Portugal. A cauda varria o pó, a respiração era toda 
fogo, e os crinas ondeavam ao vento. Diante d'^ 
as mais altas montanhas encolhiam-se e tomavai»- 
se outeiros; o mar e os abysmos solidificados ajáar 
navam-se; e no perpassar do galope inf«mal osca^ 
valhos inclinados tremiam e beijavam o chão, fien- 
veis como juncos. Cavallo e cavalleiro não corriam, 
voavam 1 Debaixo da ferradura magica as aguas toma- 
vam a dureza do diamante: a terra osoftava, e mil bis- 
cas, saltando da cratera dos vulcões, vii^bam cci^oar o 
rei do fogo. Ao romper daaurora o corsel Fetrahiu-^se, e 
estacou. Apontava o dia nó topo de mn^cnjLzâepeckd. 
Não passou d'ali. Á medida que ia aclarando a manha 
adelgaçavam^se-lhe as formas e do jprimairo raio de 
sol dissolveu*se desfeito em fumo. 

Quando acabou de desapparecer tangia um sino. 
D. Mgo olhou e conheeeh o sitio. .Efita«|t junto da 
egreja aoncte fora sqmhado seu irmio. Ao primeico 



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A TORRE DE GAIN 29 

passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; 
ao segundo illuminou-se a capella repentinamente; 
ao terceiro as rosas vermelhas cairam seccas e as 
brancas floriram juntas. Um cântico suave dentro 
levantava o Avenjiaris síeWa. Estava aplacada a vin- 
gança do morto. A fé, porem, debalde chamava ali 
por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu em vão. 
lhe offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a pa- 
lavra de misericórdia 1 Orava n'aquelle momento a 
Deus, muito longe, um santo hermita pelo maior pec- 
cador. Arrebatado em espirito, viu um homem cus- 
pindo por ódio na cruz á porta de uma egreja. O 
anjo Custodio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de la- 
grimas as vestes luminosas; mas o desacato gelou- 
Ihe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, su- 
biu na aragem até se perder nos raios dourados do 
sol nascente. 

«A tua clemência. Senhor, é infinita 1 exclamou o 
justo. Haverá perdão para o que renega o teu Santo 
nome?» 

N'este ponto a visão sumiu-se; as portas da er- 
mida fecharam-se com estrondo; e uma voz, seme- 
lhante á da tempestade, bramindo nas selvas, repe- 
tiu ao longe : memento, homo, quia pulvis es t 



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j 



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KSo ha gosto sem pesar 

N^aquelle tempo, em terras de alem Douro, que 
rico homem era mais poderoso e rico do que D. Or- 
donho, conde? Estendendo a vista dos eirados do 
castello por valles, montes e campos, sabia que tu- 
do era seu. A um aceno trinta cayalleiros mettiam 
o pé no eslribo, e centos de homens de annas e 
peOes seguiam o seu pendão. Descendia da grande 
raça dos primeiros lidadcnres das Astúrias, raça <le 
bronze nos ódios, e de ferro nas vinganças* A eda- 
de gasta os mais fortes, e açor velho não se remon- 
ta ás águias. Quando na carreira o vento lhe sacu- 
dia as madeáxâs brancas, D. Ordenho sentia que os 



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32 A TORRE DE GAIN 

aimos não haviam passado em vão. Só a neta, a 
formosa Auzenda, único amor da sua vida, podia 
distrahil-o das horas de tristeza. Mais do que filha, 
porque duas vezes era o sangue da sua ahna, um 
sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma lagri- 
ma só d'aquelles olhos lindos, transformava em cor- 
deiro o leão embravecido. 

Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre 
de menagem. Os homens de armas crusam-se nos 
eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa 
cavalgada, que se espera? 

O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; 
desmaiaram os derradeiros clarões no topo da cruz de 
pedra; levantou-se por fim a lúa sobre as campinas, 
e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em 
larga distancia ao r^dor. 

No castello era véspera de noivado. Auzenda, 
a bellá Auzenda, ia casár-se com Moço Ansures. Es- 
tava por horas a festejada véspera de S. João, e por 
horas também estavam a cumprb-se quatorze annos 
desde que os monges negros rezaram o officio de fi- 
nados em volta da tumba do cavalleh-o assassinado. 

Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do 
seu balcão pára a coroa do outeiro, que fica defi^on- 
te? Córdova e Granada, os dous Edens da formosu- 
ra, entre mil não se ufanavam de possuir pérola de 
egual valia. Aqíiella belleza era sem par. Sorria-lhe 
o ce& noí5 lábios; ondeavam os cabeHos em tranças 



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A TOBRE DE GAIN 33 

d'oiiro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor 
aspira, ohl quem podéra vencel-os depois de ven- 
cidos por ellesl Delgado cinto aperta*llie as roupas 
no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora folga 
livre com o vento, ora desce em pregas graciosas 
sobre o seio palpitante. Ao raiar da alva tinha saido. 
Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha, 
fogem tão leves, que mal trilham os musgos das 
fragas na serra Íngreme. As rozas accendem o rubor 
na face assetinada desmaiando os lyrios. Boninas e 
cecéns tecem a coroa silvestre pousada na fronte. 
Ajoelhou a cruz solitária, e a oração matinal subiu 
casta e pura do coração ao throno do Senhor, no 
meio das fragrâncias da aurora. O vestido branco de- 
senha confusamente as formas, e visto de longe flu- 
ctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão 
celeste que os raios da primeira luz vão desvane- 
cer. EUa a chegar, e um cavalleiro a correr do lado 
opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de 
aço. E D. Moço Ansures. Ajoelha a seu lado e jun- 
tos offerecem a Deus as premicias do amor. 

— ^Voltais logo? perguntou a donzella corando. 

— ^Ao cerrar da tarde 1 responde mettendo-a na 
alma com o apaixonado olhar. 

—Tão tardei? 

— Quereis que fique? Mas o voto que fiz?l . . . 

— ^Nãol Mas! . . . 

— ^Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui! 

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34 A TORRE DE GAIN 

Separaram-se, EUe despediu o cavallo pelas gar- 
gaptes da montanha, ella seguindo com a vista sau- 
dosa até desapparecer por traz do ultimo outeiro. 

Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o co- 
ração? É por isso que a donzella scismava sosinhaao 
cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva a 
çombatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a 
tarde, fechou-se a noute, e quando as estreUas co- 
meçavam a tremer na abobada do ceu, recolheu-se 
suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sii^ta 
da atalaya. Donas, cavalleiros e pagens principiavam 
a entrar no caçtello, attraidos pelos festejos. As armas 
reluzentes, as plumas de cores diversas, os tabardosde 
matizes variegados deslumbravam, vistos á luz dos 
fachos. O som das trompas, os latidos dos lebreus, 
os relinchos dos cavallos, e as vozes dos peões ani- 
mavam de mil ruidos alegres o quadro do noivado. 
O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela 
estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os 
arbustos debaixo da sombra. O seu brado vencia o 
estrépito. 

— ^Pagens 1 Escudeiros 1 Fazei honrai exclamava 
cortejando os recem-chegados com a bocca cheia de 
riso. 

Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo 
falta. A ultima hora do dia, segundo sua promessa, 
deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e com a 
noute cerrada nãq chegava 1.., Do lado das monta- 



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A TORRE DE CAIN 35 

nhãs não havia rebate de mouros. As almenáras apa- 
gadas não davam signál de inimigos. Que motivo 
demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o 
chamando tão meigo e desejado? Porque se ausen- 
tara n'aquelle (fia, em que tantos estremes o convi- 
davam a não se apartar dos bellos olhos que o pren- 
diam? Um juramento sagrado! Um voto! Promette- 
ra a Deus, para expiar aos olhos de todos a união 
das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o 
tumulo de seu pae. Por isso deixara Auzenda junto 
da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as 
horas passavam e a saudade impaciente da noiva as 
contava tão vagarosas! 



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m 

Deus seja oomnosoo 

Na sala de armas do casteUo soam mil vozes de 
jubilo. Que luz faisca das malhas pulidas e que re* 
flexos, que cegam, saltam dos dourados capellos! 
Cavalleiros moços faliam de amores, inclinados sobre 
os estrados das donas e donzellas. Violas e doçainas 
acompanham as coplas dos trovadores. Mais adian- 
te, em turbilhões de cem cores, em collos ondeados 
e graciosos, giram e volteam as dansas, e o olhar 
furtivo de alguns pares promette, em breve, dias se- 
melhantes a mais de um solar. 

Na vasta quadraapparelhada paraofestim em quan- 
to os convivas não entram, o vento geme por entre fn- 



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38 A TORRE DE CAIN 

zos e laçarias dos delgados columnellos. A lua, alta no 
ceu, entorna pelos vidros corados das frestas golphadas 
de luz branca. De repente as trompas quebram o silen- 
cio. Avizinha-se, ejá se reflete nas paredes, o clarão de 
muitas tochas. Povoa-se a sala, innundada de luz su- 
bitamente. Os escanções enchem as taças e fazem- 
as circular em roda. Saúdes, acclamações, e vozes 
crusam-se, trocam-se e voam em confusão jovial de 
um a outro extremo da casa. D. Ordonho parece re- 
moçado. Á sua direita senta-se Auzenda. Da esquer- 
da um escanho vazio aguarda D. Moço Ansures. 
Defronte, em outro escanho, também vazio, estaria 
o pae do noivo, se podesse deixar a sepultura. Co- 
bre-o um veu de luto. 

A meio do banquete as dansas tornam a entrançar 
os pares como grinaldas vivas do festejo. Pelas por- 
tas abertas do alcácer enxameiam incessantemente 
donas, cavalleiros e monges, convidados pela hospi- 
talidade quasi regia do rico-homem. As taças cheias 
de licor espumoso correm de mão para mão. D. Or- 
donho, de pé, alça a sua, e com a fronte erguida 
brada: 

— Á paz dos christãosl Á ruina e confusão dos 
infiéis! cUma longa acclamação responde á sua 
voz: t Assim findem todas as discórdias entre ir- 
mãos! » 

Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando^ 
voltando a vista, soltou um grito. Os convivas olha- 



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A TORRE DE CAIN 39 

ram também e ficaram immoveis com as taças sus- 
pensas. 

No logar vazio destinado a honrar a memoria 
do paede Ansures,appareceu de repente um homem 
sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada 
e na cotta o açor bordado. Descalçando o guante di- 
reito, e empunhando a primeh^a taça cheia, ergueu- 
a lentamente. 

— ^Bem fallado, conde Ordonho ! (exclamou.) Á 
paz da noute de S. João!.. 

Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculan- 
do a toalha, tomou-se vermelho e vivo como sangue. 
No sitio em que pousou a taça uma malha de ferro 
em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a 
viseira. Os olhos, as feições o os modos eram exa- 
ctamente os do cavalleiro assassinado havia quator- 
ze annos; porem os cabellos e as barbas brancas 
lembravam, que por cima do seu corpo passara o 
írio da sepultura. 

Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, 
petreficados por um poder occulto, não podersm 
mover-se. O horror gelava a todos. 



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IV 

Enterro por noirado 

Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois 
proseguiu: 

Dava meia noute. A sineta da hermida repicou 
três dobres compassados. Ao primeiro as dansas es- 
tacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, 
ficaram immoveis como estatuas. Ao segundo os sons 
emudeceram nas cordas das violas e alaúdes. A ul- 
tima nota tremeu solitária e reboou pelos vaõs pro- 
fundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, 
8 o canto dos jograes transformou-se repentinamen- 
te em dies irce que retumbou. Os cabelloserriçaram- 
se de horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e 



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42 A TORRE DE CAIN 

vacillou nos alicerces, como se um terramoto o aba- 
lasse. Os eirados jogaram, as torres inclinaram pen- 
didas. E o cavalleiro negro? Ainda o sino dobrava 
já tinha desapparecido. Que susto! Que pavor 1 Que 
immensos clamores! Muitos intentaram fugir. De- 
balde! As portas, sem ninguém lhes tocar, fecharam- 
se adiante d'elles. O portal maciço gemeu nos qui- 
cios e cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis ala- 
ram as dobradiças. 

Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos 
os olhos que por amor de ti choraram; a alcachofra 
benta ardendo não brotou a flor de esperança; o pal- 
mito symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ra- 
mas de cypreste esfolhou sobre o leito do noivado. 
Nos paços do conde ninguém se entendia. Estava 
sobre elles o poder do inferno. O suor frio borbulha- 
va nas faces dos cavalleiros, e o tremor dos mais ou- 
sados fazia tinir a espada contra a espora. De repen- 
te raiou uma pluma de fogo na escuridão. Cresceu, 
alastrou-se e em breve as nuvens de fumo enrola- 
ram-se côm as labaredas enroscadas nos. grossos 
madeu-os dos tectos. Jesus! Acudi! O castello está a 
arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir e 
fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados 
tão altos, e o fosso tão fundo !N'estemom^to rom- 
peu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velavai 
e o seu clarão palUdo lançou como um sudário so- 
bre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a 



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A TORRE DE GAIN 43 

curta distancia sobranceiro ao castello. As aguas, re- 
bentando ali á sombra de antigos dioupos, ferviam 
de encontro ás fragas, e despenhadas espumaram 
batendo em cachões no leito da ribeira, que lã em 
baixo bramia arremessada por entre a bronca pene- 
dia. 

Aonde está D. Ordenho? Junto de Auzenda des- 
maiada! Com ella nos braços por entre as chammas, 
-quelhe crestavam o rosto, não correu, voou baixando de 
andar em andar, até ao tejreh^o. Ahi, olhsuido, viu tu- 
do cerrado, as labaredas serpeando cada ve? mais 
vivas e o castello pedra por pedra quasi a descon- 
juntar-se. Os cavaUeu^os escondiam as lagrimas en- 
vergonhados. 

— ^Erusigisl Escudeiro!... A minha acha adamas- 
cada! clamou o senhor de St.* Olaia. Este pulso 
pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui 
todos! gritou depois em grande brado. 

Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais 
desalentados. Ergueram-se as achas... Golpes de 
cem machados, vigor furioso de cem robustos bra- 
ços ferem a um tempo com anciã mortal a porta 
maciça e chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou 
fogo, os gonzos tremem... Mas nas taboas nem si- 
gnaes dos finos gumes. Os machados, estalando, las- 
cam até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas 
e do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Or- 
donho volveu os olhos. Na coroa do rochedo cam- 



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44 A TORRE BE CAIN 

peia o cavalleiro negro. As aguas espumavam por 
baixo dos pés do corcel; a mão direita brandia um 
facho; a esquerda só peava com as rédeas o cavai- 
lo preto, quasi no ar sobre o abysmo. 

— Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua 
festa do S. João. Accendi-a eu. Pago as arrhas da 
formosa noiva. 

— Maldito!... 

— ^Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha 
quatorze annos?! Chegou o diae a hora das ultimas 
contas. O sangue dos teus vingará o sangue dos 
meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes. 

Ditas estas palavras, como se o inferno as so- 
prasse, as chammas em vagas furiosas investiram o 
castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. 
No hombro tinha reclinado outra vez o Imdo corpo 
de Auzenda sem sentidos. As faces desbotadas da 
donzella tocavam o rosto queimado do velho; as tran- 
ças de ouro misturavam-se com as madeixas bran- 
cas; os olhos languidos, em que expirava a doce luz 
da vida, cerravam-se mortaes. 

— Castigái-me, Senhor! bradava o conde, choran- 
do como creança. O sangue verteu-o esta mão cul- 
pada. . . . Feri a cabeça do peccador saciado de an- 
nos e de amarguras! Mas estainnocentel O que fez 
para acabar asshn?... Poupai-a em vossa justiça!. 

Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O 
que não daria n'aquelle instente o senhor de tau- 



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A TORRE DE CAIN 45 

tos vassâUos e castellos por alguns palmos de terra 
livre, por uma respiração pura da briza nocturna, 
que nos serros vizinhos refrigerava as misérias do 
escravo? 

O conde ergueu-se de novo. As almas viris po- 
dem vergar um momento, mas não quebram... As 
maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pran- 
to enxugou-se em todos os olhos; e os mais intré- 
pidos estremeceram, vendo passar muda e terrível 
aquella vingançal Eil-o vai o velho fronteiro! Nem ca- 
pello de aço lhe cobre a fronte núa, nem amez lhe veste 
o peito descoberto. Leva porem a morte escrí- 
pta no rosto. O sombrio clarão do desespero re- 
luz nas orbitas ensanguentadas. A voz emudeceu 
nos lábios, brancos e descorados. Deixai-o u*! E' o 
castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! E' o 
santo amor de pae que o inspira! 

A águia real não caiu logo. Varado o peito, sobe 
e perde-se nas alturas para depois baixar inerte. 
Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fo- 
go ameaçador na vista immovell Que fria raiva no 
yôo lento! Guarde-se o falcão. Primeiro perderá a 
vida que o rei dos ares. Assim era D. Ordonho!... A 
lua esc(Mideu-$e. Atormenta rugia ao longe. O ven- 
to Isfôtíròavarse soturno. A distancia, nos outeh^os e 
plainos, refletia-se o clarão avermelhado do incêndio. 
O fumo em rollos salpicados de faiscas estendia-se 
como toldo inmienso. As aguas e o furacão confon- 



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46 A TORRE DE CAIN 

diam os bramidos. Os relâmpagos lambiam a msta 
dos montes. O trovão estourava em estampidos 
medonhos. 

A aza negra da tempestade varria a face da ter- 
ra.... Que vulto éaquelle, que as labaredas rodeiam 
emoldurando-o encostado ao arco no ,eirado da tor- 
re Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés 
as lageas abrazadas e não recua. Sobre a cabe- 
ça crusam-se mil centelhas e não as sente. Ao lado 
estalam e desabam os madeiros com fragor, racham- 
se e abatem as paredes, e não as vê! O temporal 
fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando> 
lasca os penhascos da montanha ; as torrentes, cres- 
cendo túmidas, inundam as margens como rios cau- 
dalosos. Que escudo cobre, pois, acpielle homem 
que todos os perigos e horrores da vida conjurados 
não o aballam? A desesperação 1 Que lhe importam 
ao desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da 
terra? Esconde no seio a peior das mortes. Morre- 
ra em vida. O castello de seus avós será o sepulcro 
do ultimo descendente de uma grande raça. 

Sohou por ultimo do peito um rugido immenso. 
A côr livida da ira dava-lhe á face o aspecto de um 
cadáver. Encurva o arco, reteza a corda, e a vis- 
ta mede o espaço. Ai do que aparar o tiro 1 A se- 
ta só espera um aceno para voar sibilando ao seu 
alvo.... 

Três vezes estalou o trovão, e três vezes um len- 



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A TORRE DE CAIN 47 

çol de fogo jorrou dos céus abertos. Soa distincta- 
mente o galope de um cavaflo. As ferraduras, ras- 
pando as fragas, fazem saltar as faiscas umas atraz 
das outras. Armas brancas, capello sem viseira, no 
peito o açor do Douro. Será D. Moço Ansures? A' 
claridade dos relâmpagos, á luz do facho sacu(Mdo 
pelo cavalleiro negro, viram todos o corsel do man- 
cebo ennovelado sobre a aresta do precipicio, quasi 
a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavallo e ca- 
valleiro arcpiejam suspensos de um fio sobre o abys- 
mo. O que Inigo lhe disse, o que elle respondeu, 
ninguém o ouvio. O vento bramia forte. Pouco de- 
pois descortinava-se D. Moço enristando a lança 
meio corpo debruçado para o precipicio, e o rene- 
gado arremeçando o facho ás aguas para se rodear de 
trevas. O braço do Maldito alçou de súbito a espada 
e o golpe descia já... quando uma seta passa asso- 
viando. O mancebo vio então o seu inimigo rolar aos 
pés do ginete e logoapoz um corpo dobado nos ares, 
resvalar, batendo nas pontas das rochas até se atu- 
far dilacerado e disforme nos cachões da nascen- 
te, que espirram a grande altura espuma e sangue. 
Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e 
vibrante levanta brados de triumpho, e por momentos 
avulta a estatura gigante do conde Ordenho, cosida 
nas chammas, immovel e magestosa, com os cabei- 
los soltos ao temporal. Depois abateu-se a torre com 
grande estrépito, as quadrellas âlluii*am-se, as traves 



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48 A TORRE DE CAlN 

accesas remoinharam e csâram, e entre os destroços, 
como em leito tranquiUo, o velho guerreiro adorme- 
ceu do somno eterno. Honra ao que morre amorta- 
lhado em suas armas e envolto no seu pendão! Ao 
cabo de sessenta annosde pelejas o fronteh^o sepul- 
tou comsigo a orgulhosa raça de riba d' Ave, e do 
seu castello só ficM^am de pé aquella torre negra, 
que alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos 
de Pedro Ansures. 

— ^E D. Moço? perguntou Martim Paes. 

— ^E Auzenda? acudiu D. Nuno. 

D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, te- 
ve um presentimento, e, cravando esporas no ca- 
vaflo, despediu a carreira veloz por cabeços, fragas, 
e alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o cla- 
rão do incêndio e viu-o arder. Apertando o corsel, cor- 
reu como louco, e só parou quando o facho do cavaJleiro 
negro lhe cegou os olhos. O que succedeu então já vos 
contei. Apenas Inigo expu^ou, desfez-se o encanta- 
mento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a, mas 
sem vidai Levaram-a os monges a capella, puzeram- 
Ihe na cabeça uma coroa de cecéns, e a terra comeu 
de quinze annos a formosura mais invejada das Hes- 
panhas. 

D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade 
matou-lhe a alegria, a esperança, e a juventude. Nun- 
ca mais vestiu annas. O que iria pedu' ás batalhas? 
A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte? 



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A TORRE DE GÀIN 40 

Para quê? Não a sentia já no peito? A liberdade dá 
terra do seu berço? Ai! Nem essa ideia mesmo po- 
dia fundir já os gelos d^aquelle coração!... Sombra 
do que fora, o que fazia o desgraçado n'esta desterro 
cruel, sem afifectos, sem amigos, sem consolações? 
Como o carvalho, que o raio feriu na força do cres- 
cimento debruça os ramos mirrados e se torce e de- 
finha até cair, a dôr e a memoria, verdugos implacá- 
veis das existências desgraçadas, minavam-lhe a vida, 
seccando-lh'a na raiz. 

Sobre a madrij^ada o somno pousava-lhe a medo 
fi!ãBi|íâipebras molhadas de lagrimas. Então a febre 
âòi ddirio representava-lhe junto do leito a doce 
inSá^m,' que trazia no coração. Era ella! Yia-a, 
Como nós dias ditosos. A mesma grinalda de flores 
do campo sustinha os cabellos louros que fugiam em 
ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas 
virginaes; nos olhos sempre a luz suave do amor, 
que o fizera tão feliz; nos lábios aquelle sorriso 
em botão, que se abria casto como a rosa. O man- 
cebo queria estreitar a visão querida ao peito, e acor- 
dava, chorando, porque só abraçara o ar. N'este tor- 
mento agonisou por mezes até que Deus, compade- 
cido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, aonde 
se recolhera. 

Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe 
unido ao peito, sobre o coração, um laço de cabellos; 
e no quarto de alva o frade, que ficara orando a ve- 

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60 A TORRE DE CAIN 

lar a tumba, contou depois que vira apparecer uma 
dama, formosa como os anjos, e inclinar-se triste 
sobre o corpo. De dentro do ataúde saiu um braço, 
e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe 
um annel no dedo e cingir-lhe a coroa de boninas 
que trazia, na fronte descorada. Um guerreiro de ar- 
mas negras, e de estatura descommunal, por três ve- 
zes lutou pararomper o circulo luminoso, que arodea- 
va, e outras tantas, vencido por braço invisivel, se 
prostrou com a face no pó do templo. Eram as nú- 
pcias dos mortos, o noivado de Auzenda e de Ansu- 
res? Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguin- 
do na donzella o sangue inimigo e a vingança contra 
o conde Ordonho? Altos mysterios de Deus. Quem 
ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e os 
prodigios da sua clemência infinita?! 



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o CASTELLO DE ALMOUROL ' 



CÍMO-O DO SÉCULO XVII 



— Ai, Virgem Santissima! Não ganha a gente para 
sustos! Não bastava esta praga dos castelhanos, que 
vem ahi, dizem, um poder do mundo d^eUes pelo 
Alemtejo abaixo?! Ó sr. Romão Pires, d'onde elr 
les estão aqui á nossa quinta é muito longe? 

— Não é nada perto, não, sr.* Brizida de Sousa! 
Mas lá diz o adagio: aos que muito correm que- 

1 A prematura morte do illustre auctor d'este livro não lhe 
permittiu concluir este admirável romancinho. As paginas, po- 
rém, escriptas representam um tal primor de litteratura, que 
fora falta imperdoável condemnal-as a obscuridade. Os amadores 
de boas letras de certo nos agradecerão a resolu^ tomada de 
mo os privarmos de alguns momentos de não mmto vulgar lei- 
tura. 

O Editor 



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52 o CASTELLO DE ALMOUROL 

bram-se-lhes as peraas... Socegue. O sr. conde de 
Villa Flor anda com elles a contas e não é para 
graças. 

— O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e 
de grande fama sempre ouvi dizer... Mas se elle fi- 
casse mal agora? 

— ^Ficávamos nós peior, isso é verdade... Melhor 
o hade fazer Deus. Oh, se meu senhor e amo fosse 
vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto como um 
estafermo!... 

— Ora não diga isso por cpiem é. O sr. Romão 
já andou demais por essas guerras e tragou bem 
maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... 
O que seria de mim sósinha n'estes palácios confu- 
sos, sem pregar olho ha umas poucas de noites com 
medo... E que medo! Fantasmas e ahnas do outro 
mundo! Ó sr. Romão Pires, diga-me: o demónio 
— salva tal logar — terá poder de subverter com- 
sigo no inferno corpo e ahna uma creatura bapti- 
sada e remida nas santas aguas?... 

— Conforme! Se não estiver em estado de gra- 
ça!... 

— Credo! S. Braz e S. João! Meus ricos santos 
da minha ahna, valei-me ! Subvertida em corpo e al- 
ma?! Deus de misericórdia!... Sabe que mais? Quero 
que me escreva já e já á sr.* D. Magdalena, contan- 
do-lhe tudo isto. Ella não pôde consentir que a sua 
criada velha uma noite d'estas desappareça nas gar- 



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o GASTELLO DE ALMOUROL 53 

ras do inimigo tentador do género humano. Jesus!... 
Diga-lhe que nos venha Uvrar d'este inferno, senão.;, 
eu cá por mim fujol Primeiro a salvação da minha 
ahna... 

— Também eu não gosto nada d'isto, sr.* Brizida. 
Mas animo forte e coração á larga. O demónio pa- 
rece que entrou de semana conmosco, e, pelo que 
vejo, não leva geito de nos querer largar. Desde que 
viemos para esta quinta... 

— ^Desde que viemos... diz muito beml Olhe, Bri- 
zida de Sousa me não chamasse eu, se depois da pri- 
meira noite não mettesse um bom par de legoas en- 
tre o demónio e quem se presa de christã baptisada 
na freguezia de Santa Catharina de Lisboa, nascida 
de pães catholicos, tementes a Deus, e sem eiva, 
nem leiva de mau sangue 1... Mas o amor, que tenho 
á minha menina, coitadinha, tudo me faz supportar 
com paciência... Espere! Não ouviu bulha? Assim 
a modo de ferros arrastados pelo sobrado? 

— Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão 
lá em cima. De dia não é que elles fazem das 
suas... 

— ^E verdade. Guardam-se para a noite. Que noi- 
tes, que eternidade de noites. Senhor Deus de mi- 
sericórdia! Parece que nunca a gente lhes vê o fim. 
E que me diz então a estas despedidas de maio e 
entradas de junho?!... 

— ^Não são de convidar, sr.* Brizida! Velho sou, 



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Si o CA&TELLO DE ALMOUROL 

mas não me lembro de amio mais carrancudo. Chu- 
vas, relâmpagos, troviJes e ventanias qute levam tudo 
pelos arest Safai 

— E nós, coitados, n'este ermo^ n'este desterro! 
Ai minha Senhora Santa Barbara 1 se a tua serva e 
devota não deixa aqui os ossos, grande milagre será. 
Escutei... Agora não foi enganol... Não ojiviu risa- 
das lá em cima no vão das casas? 

— Não é nada. São os rapaces do feitor jogando 
as escondidas. 

— ^Pois, sr. Romão Pu^es, aflSrmo-lhe por minha 
alma, que em Lisboa, quando minha senhora D. 
Magdalena me chamou e me disse: fBrizida, a sua 
menina anda fraquinha e enfezada, e o irmão tam- 
bém, os phisicos não acertam com o remédio, e fr. 
João entende que estas tosses do peito, assim tei- 
mosas, não se despegam senão com mudança de 
ares. Bem sabe, não posso sau* da cidade por estes 
dias mais chegados — e é assim, coitada, por causa 
da sua demanda — acompanhe-me os meninos, e 
conte que fico tão socegada como se eu mesma fos- 
se... » Quando me disse isto, e eu lhe beijei as mãos 
pela mercê, se podesse adivinhar o que nos espe- 
rava aqui, asseguro-lhe que me encdhia como a 
tartaruga na concha; e viesse quem quizesse... Isto 
Bão é palácio, nem quinta, é um verdadeu*o inferno t 
Deus salve a minha alma! 

—A sr.* Brízida não diz o que sente. Vindo a 



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o CASTE3X0 DE ALMOUROL 56 

sr.* D. Maria e o sr. D. Pedro, ninguém a arrancava 
de ao pé d'eUes. 

— Tem razão. Ninguém I A ella creei-a, mamou 
o meu leite, e sua mãe não lhe quer mais, não, dei- 
xe-me ter esta presumpção... A elie vi-o nascer, e 
os primeiros braços, cpie o embalaram, foram estes 
que hade comer a terra. Tão pecpieninos os conheci, 
e tão formosos e crescidos os vejo agora, que nãô 
me posso costumar a crer, que um dia hei de ter o 
gosto de os abraçar homens!... Quando me ponho 
a olhar para elles, parece-me ás vezes que não pôde 
ser, e que tudo isto é sonho... 

— ^Então!? Elles fazem-se homens, e nós faze-r 
mo-nos velhos. Não ha remédio. O mundo vae as- 
sim. 

— ^Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito 
afinadinhos? Dizem que é da edade e do muito cres- 
cer, e que hão de encorpar depois. Deus queira! São 
os ne^egados estudos, que me ralam o corpo e a 
alegria dos meus meninos. A sr.* D. Maria manhãs 
e tardes inteiras á almofada, bordando de branco, 
de matiz, e a ouro. E com que perfeição!... Que de- 
dinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? É mes* 
mo uma dôr de alma vel-o dia e noite amarrado á 
banca dos livros, e que livros! Latins, gregos, e não 
sei que outras trapalhadas de retrorícas... Quem tem 
a culpa de tudo, o culpado de tudo o que pôde acon- 
tecer, é o teimoso do sr. fr. João, que á fina fíwpça 



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56 o CÀSTELLO DE ALMOUROL 

quer o sobrinho sábio. Depois que falleceu o pae, 
(Deus o tenha em gloriai) não se nos tira de casa, 
e tanto ha de quebrar-me a cabeça ao meu menino, 
que um dia treslê. Pois olhe, sr. Romão Pires, vá 
com o que lhe diz uma ruim cabeça: mais vale asno 
vivo, que doutor morto. 

— O sr. fr. João, atalhou Romão Pires, aprovei- 
tando uma pausa da sr.* Brizida, é muito bom tio, 
e desde que morreu meu senhor e amo tem sido um 
segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos 
prendados e de grandes merecimentos. Não lh'o le- 
vemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna pos- 
suem elles... 

— Por isso mesmo 1 Não precisava atanazarmos 
tanto 1 Não m'os deixa resph^ar. Mestres d'isto, mes^ 
três d'aquillo, musica para aqui, dansa para acolá... 
latins, pholosophias, ai, que barafunda! Nem eu sei 
comoaspobrescreançasnãoteem endoudecido. Cá por 
mim já o miolo ha muito tempo me tinha dado volta, 
tão certo como chamar-me eu Brizida de Sousa. 

— Ninguém aprende sem trabalho. O sr. fr. João 
não é nenhum néscio... 

— ^Nem eu lh'o chamo. Deus me Uvre. Néscio?... 
No convento e na corte dizem que não ha outro 
doutor como elle. 

— Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. 
Estes sobrinhos são a luz dos seus olhos, e depois 
tão meigos, tão applicados... 



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o CASTELLO DE ALMOUROL &7 

— ^De mais, de mais, para a edade, sr. Romão 
Pires. Assostam-me. Não parecem d'este mmido, 
nem doeste século. O sr. fr. João ,é muito extremo- 
so, e o que faz é por desejar o seu bem d'eUes, mas, 
graças a Deus, a casa é rica e não era preciso amo- 
finar-me tanto os meus meninos... 

O dialogo de cpie acabamos de ser fieis e escru- 
pulosos expositores, era travado em uma antiga sa- 
la, vasta e pouco allumiada por estreitas janellas, 
cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. 
Das paredes em reboco pendiam farrapos soltos dos 
pannos, que as tinham forrado. Em outras partes 
as colgaduras adheriam ainda aos filetes, e repre- 
sratavam em «uas pinturas desvanecidas figuras des- 
conununaes, debaixo de arvores anãs, e no meio de 
arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas 
lavradas inculcavam a paciência de um artifice do 
XY século, subiam a grande altura, enegrecidos pelo 
fumo da immensa chaminé de pedra, ornada de 
leões de mármore nas bases, e rematada com um 
brazão de relevo alto, orlado de ramos de silvas e 
amoras. 

O sr. Romão Pires, escudeu'o de quasi setenta 
annos de edade, enxuto de carnes, e amarello como 
uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma 
das faias mais direitas da quinta. Nascera e fora 
areado desde a infanda n'aqudla casa, e não co- 
nhecera nunca outros amos senão D. Vasco, e D. 



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58 o GASTELLO DE ALMOUBOL 

Magdalena. Acompanhara seu senhor, assim lhe 
chamou sempre, em todas as campanhas da guerra 
da restauração, pelejando esfc»rçadamente ao lado 
d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notá- 
veis desde 1642. A historia dos perigos, em que se 
tinha achado, e a narração das proezas de seu amo, 
aifeitada de episódios e commentarios, serviam de 
saboroso pasto aos serões da famiha, obrigada a en- 
gulir como artigos de fé todas as av^turas da nova 
fTavola Redonda,» que a imagmaçao do escudeiro 
entretecia na tela interminável de sua cansativa DUada. 
A sr.* Brizida de Sousa, que tão avexada ouvi- 
mos queixar-se das apparições, era matrona de mais 
de cincoenta annos. Baixa, rohça e risonha, suas 
faces Usas, cheias e coradas ainda tinham a frescb- 
rade duas maçans rainetas. As feições, pouco accen- 
tuadas, e quasi infantis, sumiam-se entre as roscas 
das nédias bochechas, e os seus ares beatos briga- 
vam na candura affectada com uma larga experiên- 
cia da vida. Toda aquella pequena e buliçosa ma- 
trona respirava aceio, cuidado, devoção, e azáfama, 
CoUaça de D. Magdalena, e casada com um dos ca- 
seiros mais abastados do morgado, depois ama de 
leite da filha primogénita da casa, enviuvara sem fi- 
lhos, nem saudades do estado, resumindo todos os 
affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idola* 
tria das duas creanças, que trazia sempre na boca 
e no coração. 



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o GASTELLO DE ALMOUROL 59 

Trajava por costume roupas escuras. As toucas 
alvíssimas, caídas talvez de mais ps^ a testa, e o 
corte dos vestidos á beguina, aflSrmavam o program- 
ba da sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com 
a memoria recheada de orações, de visões, e de de- 
votas crendices, o seu defeito capital era occupar-se 
muito com as vidas alheias, enfiando um rosário de 
conselhos a propósito de tudo, e mexericando, por 
indiscreta, amos, criados, e hospedes, mas sem in- 
tenção ruim. Todos se encobriam d'eMa, quanto po- 
diam, porém ninguém a aborrecia. Temiam-se da 
intemperança de suas confidencias, mas confessa- 
vam a bondade do seu caracter, que era na verdade 
excellente. 

Romão Pires, tirando a estafada repetição de 
suas campanhas, representava em tudo o opposto 
d'ella. Sério, como um santão, embizourado, e qtia- 
si sempre com a aguda barba escondida na gargan- 
tilha, se levantasse a vista e a curiosidade para os 
negócios dos outros, cuidaria faltar a Deus, a si, « 
ao mundo. Sua boca era sagrada, e segredo que lhe 
caisse no peito ficava sepultado n'elle profunda- 
mente. 

Apesar d'estas qualidades contrarias e talvezi 
mesmo pelas possuir, era o conselheiro nato da sr.* 
Brizida em todos os casos intrincados, e o defensor 
convicto dos seus medos e indiscrições. — <cBoa 
alma! Boa ahnal respondia aos que a censuravam. 



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60 o GASTELLO I>E ALMOUROL 

Tem o defeito de fallar de mais, mas é mna sanla 
pessoa. » — Brizida pagava-lh'o. Para escutar anri- 
lessima edição das guerreiras epopeias do escudeiro, 
até fazia o sacrifício de suspender a loquacidade 
própria!... 

O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna rou- 
peta e n'umas calças côr de pulga, esguio, compri- 
do, e hirto, com um par de óculos de azelha mon- 
tado no cavallete do interminável nariz, hão desabo- 
toava a seriedade do rosto, nem dava ferias ao en- 
fado chronico senão para sorrir á sua comadre Bri- 
zida. Aquelles olhos verdes desbotados não se ani- 
mavam senão para festejar algum bom dito da ma- 
trona, cujas falias assucaradas contrastavam com a 
voz rouca e soturna do antigo campeão da indepen- 
dência portugueza. A predilecção honesta, mas de- 
cidida dos dois um pelo outro, não escapara aos 
criados, e todos acreditavam que, cedo ou tarde, o 
vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estrei- 
tamente a união de duas almas já tão intimas. 

A quinta, em que residiam havia duas semanas, 
situada na margem direita do Tejo, estendia as ma- 
tas e charnecas até á ribeira, que separa Paio Pelle 
da villa de Tancos, da qual a casa, construida so- 
bre uma collina, distaria pouco niais de dois ou três 
tiros de espingarda. Era palácio antigo, talvez fun- 
dado por meiados do século XIV, accrescentado, e 
reparado pelos fins do XVI. As ameias, já derruba- 



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o GASTELLO DE ALMOURQL 61 

das em muitos lanços de mmro, proclamavam a sua 
yelha e legitima nobreza. Duas alas teminadas por 
torres fortificadas em tempos mais remotos, saindo 
fora do corpo principal do edifício, formavam os la- 
dos do espaçoso terreiro, rasgado diante da fachada, 
cujas doze janellas de architectura irregular olha- 
vam para elle. No terreiro se tinjiam jogado cannas 
e corrido touros nos anniversarios festivos dos se- 
nhores. 

A casa era antiga, como dissemos, e estava mui 
to velha. Nas juntas e articulações das pedras car- 
comidas cresciam tufos de viçosas paríetarias. Uma 
arcada sombria, sustida por grossas pilastras, res- 
guardava as entradas das duas escadas, que subiam 
em volta de caracol até ao primeh^o andar. Outra 
porta, por baixo do centro da arcada, dava serventia 
por uma rampa para os subterrâneos allumiados ao 
rez do chão por agulheiros. No piso nobre corria 
uma fileira de salas nuas, frias e tristes, lageadas de 
ladrilho. Sobre os corredores por onde o ar e uma 
luz escassa a custo ch*culavam, abriam as alcovas 
suas portas envidraçadas. Seguiam-se muitos apo- 
sentos, mais ou menos escuros, crusados de passa- 
gens, de escadas furtadas, é de portas falsas, com- 
pondo desde o andar térreo até aos vãos debaixo 
tios telhados, uma rede inextricável, um verdadei- 
ro labyrmtho. A casa de jantar, forrada de carvalho 
em molduras, prolongava-se á maneira de refeitório 



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6S o CASTELLO DE ALMOUROL 

entre dois extensos corredores. Na extremidade de 
mn d'elles baixava uma escada para o jardim, na 
outra empinavam-se os degraus da escada, que ia 
para os vãos, os quaes por cima corriam em larga- 
ra e comprimento da-^casa. As torres communica- 
vam-se com o corpo do edifício por duas portas es- 
guias e abobadadas, aferrolhadas havia longos an- 
nos. Os eirados, meio abatidos, vertiam-lhes dentro 
em torrentes as chuvas caudaes do inverno. 

O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azule- 
jados, com um tanque de pedra no meio, e um sa- 
tyro hediondo entornando a urna desforme, creava 
algumas roseiras e craveiros degenerados entre ur- 
tigas, papoulas, e malmequeres bravos. As hortas 
mais cuidadas pegavam com as terras de pão, cingi- 
das de vallados altos, defendidos com pitteiras. O as- 
pecto do palácio era carregado de melancholia. Ro- 
deado de sohdão justificava em sua tristeza as quei- 
xas, que ouvimos á sr.* Brizida. Porque escolhera, 
porém, D. Magdalena aqueUe ermo para abrigo dos 
filhos e dos criados, quando tinha tantas proprieda- 
des mais alegres e reparadas aonde podessem res- 
pu^ar, longe do buhcio da corte o ar do campo? 

D. Magdalena descendia da familia illustre dos 
Coutinhos Noronhas, de que fora tronco e progeni- 
tor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do 
couto de Leonil, e meirinho-mór por el-rei D. Fer- 
nando na comarca da Beira. Formosa, discreta e re- 



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o CASTELLO DE ALMOUROL 68 

catada, perdera seu marido, D. Vasco Mascarenhas, 
mestre de campo dos exércitos de D. João IV e D. 
AflFonso VI, havia três araio^e ainda não enxugara 
as lagrimas da viuvez. Em edade de m^ecer e de 
acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa 
de Lisboa, aonde não recebia senão as visitas de al- 
guns amigos antigos da familia, guiando-se em tudo 
pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu irmão, 
grande sábio, e doutor em cânones e theologia, o 
qual se encarregara de dirigu* a educação litteraria 
dos sobrinhos. 

D. Vasco Mascarenhas, tão distincto pelo nas- 
cimento, como pelas quaUdades docaractCT e do 
espirito, unira ás propriedades de sua casa, já 
mui rica, o senhorio da villa de Paio Pelle e do cas- 
tello de Ahnourol, que sua mulher lhe trouxera em 
dote, mas quasi sempre occupado na corte com os 
' negócios politicos e no serviço activo das armas, só 
duas vezes visitara de fugida aquelle solar desam- 
parado, que principiava a cair em minas, entregan- 
do o grangeio das terras e a cobrança dos direitos 
do donatário, com excessiva confiança, diziam os mur- 
muradores, á probidade equivoca do feitor Paulo Ro- 
drigues, camponez ávido e ladino, que mais as dis- 
fructava como usurário, do que as geria como ad- 
ministrador. Avisada de que o palácio e as fazendas 
se arruinavam n^aquellas mãos viscosas, D. Magda- 
lena resolvera ver por seus olhos o verdadeiro estado 



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04 o GÂSTELLO DE ALMOUROL 

das cousas, na companhia de seu irmão, fr. João Goa- 
tinho, ficando para depois decidirem ambos o qae 
julgassem mais conveniente. 

Outra razão serviu de estimulo para a partida 
dos filhos da casa, dissimulada com o pretexto da 
necessidade da mudança de ares. Antigas relações 
de parentesco ligavam a famiUa dos Mascarenhas 
com o segundo ramo dos Noronhas, cujo opulento 
morgado possuia grandes bens na mesma comarca, 
aonde existia o solar dos Goutmhos. O logardoAr- 
ripiado, que tão viçoso beija as aguas do Tejo, de- 
fronte de Tancos, com dilatados campos e charne- 
cas, pertencia ao velho D. Nuno, cujo filho único, 
D. Monso de Noronha, sairá da corte para o exer- 
cito do Alemtejo. D. Affonso, illustre pelo berço, e 
já illustre pelo valor, vh-a crescer em belleza, pri- 
meiro com assombro, depois com paixão ardente, sua 
prima D. Maria de Mascarenhas, e não encobrira de 
seu pae o amor, que ellalheinsph^ava. D. Nuno con- 
fiou este segredo a ditosa mãe, e ella, não podendo 
desejar casamento mais vantajoso, nem mais da soa 
escolha, antes de dar o sim, quizera, comtudo, son- 
dar disfarçadamente as inclinações da donzella. Co- 
nheceu com alegria, que D. Affonso começara a apo- 
derar-se d'aquelle coração, que em sua innocencia 
principiava a balbuciar apenas as primeu*as e vagas 
aspirações de um sentimento, que não sabia definir 
ainda. 



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o CASTELLO DE ALMOUROL 65 

Corria o anno de 1663. D. João de Áustria, á 
frente das armas castelhanas, tentara o derradeiro 
esforço, invadindo Portugal com dezeseis mil solda- 
dos, e os nossos generaes, juntando as forças, mal 
conseguiram oppor-lhe cinco ou seis mil. A cidade 
de Évora, que devia ser um dos baluartes da resis- 
tência, accommettida no dia 14 de maio, capitulara, 
depois de pouco honrada defeza. Este revez aggra- 
vou os receios, e as partidas de cavallaria inimiga 
chegaram a insultar Alcácer. D. Sancho Manuel con- 
vocara immediatamente os ofíiciaes a conselho, e só 
um voto, o d'elle, approvára a conveniência de ferir 
a batalha, que as ordens do governo prescreviam 
como remédio extremo. A pericia de Schomberg, 
temendo como inevitável o desastre, viu n'elle o ul- 
timo precipicio da independência; mas a feliz teme- 
ridade do conde de Villa Flor, fechando os olhos á 
prudência, applaudia o encontro decisivo dos dois 
exércitos, como o único meio, embora desesperado, 
de salvar a provincia e o reino da sujeição estran- 
geira. 

O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvo- 
rotado nas praças, assaltara as casas de Sebastião 
Gesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes 
de Elvas. A todas as horas se aguardavam noticias 
da marcha das tropas, e todos tremiam. Um lance 
repentino podia sepultar para sempre as esperanças 
de Portugal! 



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66 o GASTELLO DE ALMOUROL 

A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, 
mais velha desoito mezes do que D. Pedro, seu ir- 
mão, contava n'esta epocha dezesete amios, e sem 
vaidade merecia ser admirada como uma f(Hinosura 
completa. Talvez que o único senão de tanta bdle- 
za fosse a sua mesma perfeição irreprehensivel. No 
rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas 
tranças, confundiam-se os lirios e as rozas na mais 
mimosa frescura. A bocca, fina e espirituosa, corada 
como um botão nacarado, breve como um suspiro, 
quando o sorriso a animava, tinha uma expressão 
[^ adorável. Nos olhos pretos, que as assedadas pesta- 
nas cT)briam ás vezes de uma sombra de enlevada me- 
lancolia, a luz serena raramente seinflammava,mas 
sua tranquillidade languiSa deixava ai ^vinhar , qiie 
se a paixão dormia ainda, fácil lhe seria, despertau; 
dOj iUuminar de síibito e vivo fulgor aquellas pupi- 
las descuidadas. "A mão parecia formada pelo mo- 
delo de uma estatua primorosa. O pé estreito e 
arqueado pousava-se tão leve e elegante, que a vista 
como que involuntariamente se alçava a buscar nos 
hombros as azas da Silphide. A voz tinha condão 
seductor. A estatura, um pouco acima de ordinária, 
e flexivel como a hastea de uma flor, também se do- 
brava como ella, parecendo que o esbelto corpo de 
melindroso não podia com o doce peso da fronte, em 
que as mil graças da primeh^a enamorada primavera 
competiam umas.iiflúaLa&j)utras sem se vencerem. 



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o CASTELLO DE ALMOUROL 67 

As posições e os gestos em sua desafectada sin- 
geleza respiravam a attracção, que o calculo debalde 
se esforça por imitar. Tudo desmentia o arteficio. O 
requebro das maneiras, o império irresistivel da vis- 
ta e do sorriso, e a magia arrebatadora das falias e 
do semblante, nasciam espontâneos, prendendo os 
sentidos e a admiração. A formosura da alma ainda 
era maior, se é possivel. O coração retratava-se na 
fronte limpida, e os infinitos thesouros de ternura e 
de abnegação, que por ora concentrava nos extremos 
de filha e de irmã, quando se abrissem a affectos mais 
vehementes, promettiam todas as venturas ao amor 
ditoso. A pureza mais casta, a da ignorância subli- 
me da infância, vestia-lhe de candura todos os pensa- 
mentos. O pejo era n'ella tão sensivel, que affronta- 
do não só faria corar o rosto, mas o corpo. Com- 
passiva e caridosa sabia conciliar a altivez do sexo 
com a brandura da Índole e afirmesada vontade. Os 
dotes do espirito esmaltavam as qualidades moraes. 

Talvez não houvesse na corte damaoudonzellatão 
instmidanahção das boas letras. Os melhores livros 
de prosa e as obras mais acceitas e castigadas dos 
poetas portuguezes, hespanhoes e itahanos, escolhi- 
dos por Fr. João, eram a sua companhia certa nas 
horas de repouso. 

' D. Maria prosava em D. Affonso de Noronha todas 
as distincções,queoexahavam. VaUamenos, porem, 
a seus olhos a illustração do berço, do que a ele- 



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o CASTELLO DE ALMOUROL 



vaçãodocaractereafidalguiadas acções, queemedâde 
tão verde quasTo haviam tornadoumpaladino.Não seria 
Hiulher, comtudo, senão a confirmassem n'este juizo a 
presença insinuante do mancebo, a gentileza do seu 
porte eanobreexpressãoda súaphisionomia. Os olhos 
dadonzella, sempre pensativos, encontrando os olhos 
vivos e rasgados do primo, aonde riam as ilhisões 
da vida e da juventude, nunca fugiam d'elles, seilao 
á furto, e as rosas mais accezas das faces confessa- 
vam o que tentaria encobrir em vão se acaso soubesse 
dissimular/ Nunca os lábios dos dois tinham soltado 
umapalavfe, quéTrevelasse o que sentiam. Amavam- 
se. A alma de um trazia sempre gravada a alma do 
outro, mas só a eloquência da v ista» in discret a áà 
vezes, trairá o segredo. D. Affonso, não podendo pôr 
lQ^4 empo cala r a chamma^ que o abrazava^ tinha .^ 
declarado jao pae, momentos antes de metter o pé no ' 
estribo e de partir para a campanha, que este amor 
encerrava todo o futuro de suas esperanças, entre- 
gando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno não 
perdera a occasião, e que D. Magdalena applaudia o 
enlace proposto. 

A chegada repentina dos filhos de D. Madalegna, da 
aya e do escudeiro, com alguns criados velhos, co- 
lheu de sobresalto o feitor Paulo Rodrigues. Tomado 
de súbito o manhoso camponez, soubera disfarçar o 
embaraço e as apprehensões, mascustera^ a con- 
formar-se com a presença dos amos na casa, que 



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o GASTELLO DE ALMOUROL 60 

ha?ia tantos araios estava costuiqado a olhar mais 
como sua do que d'efles. Mandou varrer e aceiar a 
pressa duas ssJas e algumas alcovas do andar no- 
iMre, pia^a os hospedar, recolheu a mulher e os filhos 
nos vãos do palácio, e ainda se lhe carregou- mais 
a viseira quando soube que a senhora e Fr. João 
Coutinho poucos dias se demorariam atra? da fami- 
Ua. 

No primeiro dia reinou profundo socego, mas na 
segunda noute, mal a ultima pancada do sino bate- 
ra as doze hwas, romperam as diabruras nos quar- 
tos da aya e de Romão Pires. Apagaram-se todas as 
luzes de repente por si mesmas. Estalaram nos cor- 
redores risadas infemaes. Soaram ruidos de ferros 
^cadeias arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo des- 
appareceu. 

O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar 
do tremor, que lhe sacudia os membros, quiz fazer 
e fez cara feia ao demónio. Na terceira noute levan- 
tou-se da cama^ engrolando Padres Nossos e Ave 
Marias, petiscou lume, accendeu uma vela, abriu a 
porta de manso e saiu ao corredor, quasi em vestido 
de banho, mas com a comprida espada nua debsâi^ 
do braço. Depressa se arrependeu. Aos primeiros 
passos um sq>ro forte apa!gou-lhe a luz, bramidos 
roucos e próximos gelaram-lhe o sangue, e um clarão 
momentâneo e sulphurio mostrou-lhe, envolto no su- 
dário, um spectro descummunal e ameaçador. 



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70 o CA^£IXO DE AUMMJ^OL 

Esta horreiada visão deu-lhe com os brios em im% 
e, virando costas ao inimigo, logrou refugiar-se no seu 
catre com a cabeça debaixo das roupas, acto de va- 
lor, em que a sr.^ Brizida de Sousa o acompanl^a- 
va conscienciosamente havia muitas horas. Pela ma- 
nhã os dous velbos pareciam desenterrados. 

O aposento aonde^D. Maria de Mascarenhas dor- 
mia e unia criada, não foi mais respeitado, e a don- 
zella, transida de susto, contou em vigilia continua- 
da as longas horas, que medeiaram até ao aojanhe- 
cer. D. Pedro ainda padeceu mais. Acoídando so- 
bresaltado ao impulso de mãos brutaes e no meio 
de escuridão profunda, sentiu-se arrancar do leito e 
balouçar dentro das cobertas entre uivos e rizadas. 

Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da 
saúde dos amos, e, ouvindo da suabocca a lastimosa 
historia dos tormentos e perplexidades nocturnas, 
contentou-se com encolher os hombros, e observou 
serenamente, que em vida de seu pae, já Ikiham 
muito má fama as casas do andar nobre. 

As noutes seguintes não foram mais tranquiUas. 
Os espectros e duendes tinham de certo reservado 
aquellas e^açosas salaSj e os corredores, para thea- 
tro de suas diabruras. Dir-se-hia até que o tempo con- 
spirado com elles os ajudava a augmentaro pavor dos 
hospedes. Rebentaram as trovoadas de maio tão car- 
rancudas e violentas, que os céus se abriam em re- 
lâmpagos, e a terra tr^iia com o rebombo dos tro- 



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o CA8TELL0 K AUiOUROL 71 

TSe$. iísl^tm^ caiam tão imp^osasque as estira- 
das ficaram convertidas em .leitos de torrentes e as 
taras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, 
djagava as margens, e suas aguas batiam enfureci- 
das contra os penedos schre cpie se ^gue o castel- 
lo de AlnK)urol, salvando por cima do cães em ca- 
dtoes de espuma. Ao oitavo dia acalmaram-se as 
toDQpestades, mas redobraram de força os male- 
fícios nocturnos, cera terror e espanto summo dos 
recem-ch^ados. 

Avexados, trémulos e fora de si, reuniram-se todos 
e detmninarsuín mudar a residência para os aposen- 
tos do castello, que não tinham desabado ainda mi- 
nados pelo3 secidos e pela indifferença; mas o feitor, 
que estabelecera n'elles uma filha casada, dissuadiu- 
os do propósito, ponderando que as salas e os quar- 
tos dp velho edifício dos Templários, alem de Mos 
e de mais nus, que os do palácio, não eram menos 
perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou 
elle, as almas dos cavalleiros tornavam aos sitios, 
aonde tantos annos os corpos tinham vivido. Nas 
guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas 
salas de abobada, espectros cobertos com o manto 
branco, ornado da cruz vermelha da famosa miUcia 
religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio 
da noute sentia-se o tinir das grevas e sapatos de 
ferro sd)re as lageas e ouvia-se a voz das sentinel- 
las. Até raiar a aurora não se calavam na sala de 



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72 o GASTELLO DE ALMOIJROL 

armas as vozes, as rizadas, e as blasfémias. Escu- 
tando esta descripção horrífica, Brizida de Sousa e 
Romão Pires olharam consternados um para o ou- 
tro, e depois de se persignarem devotamente, não 
querendo precipitar-se de Scylla em Carybdes, pre- 
feriram supportar as travessuras menos estrondosas 
dos duendes da quinta. Escreveram entretanto a D. 
Magdalena, pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle 
purgatório o mais cedo possivel, ou que viesse sem 
demora em companhia do Sr. Fr. João desalojar os 
espiritos diabólicos, cuja audácia zombava da agua 
benta e exorcismos do Vigário de Tancos. Os dous 
honrados servos confiavam que a grande sciencia 
do frade doutor e as virtudes do habito de S. Do- 
mingos sairiam victoriosas com certeza da rebel- 
dia de Satanaz e da maldade dos seus accessores. 

j , 



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II 



Em 1663 campeavam ainda intactas as muralhas, 
as torres, e a cerca exterior da fortaleza reconstruí- 
da no anno de 1170 por D. Gualdim Paes, defronte 
de Tancos. * Cinco séculos, passando por cima d'el- 
las, não haviam desconjuntado as quadrellas gigan- 
tes, nem alluido o cimento indestructivel, que mes- 
mo ainda agora parecem desafiar a acção do tempo 
e o braço infatigável dos demolidores. A ordem do 
Templo, transferida de Castro Marim para Thomar, 

* o castello de Almourol já figurava na epocha da domina- 
ção dos romanos. D. Gualdim restaurou-o das minas e povoou 
a terra por carta de foral. 

ELuaDARio. Tom. U p. 34(k-374. 



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74 o GÀsrasxo im ALmmBm 

a sede da sua vietoriosa milida, esteiK]^ra rapida- 
mente pela Estremadura os membros robustos. Af- 
fonso I, libwalisândo-lhe doações e privilégios, e m- 
riquecendo com largos senhorios os mon^ solda- 
dos, confiara quasi exctusivam^te ao sm Ydhr a 
guarda e defeza dos territórios conquistados n'ella. 
Ega e Soure, Pombal e a Redinha hasteavam as 
cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e outras povoa- 
ções, cobriam-se também com as dobras do famoso 
estandarte bipartido. ^ As chaves das duas entradas 
da provmcia estavam nas mãos dos cavalleiros. De- 
fronte da moderna Constança, na confluência dos 
dois rios, o casteUo do Zêzere cortava ô passo aos 
agarenos da Beira Baixa, em quanto, surgindo do 
meio das aguas, o castello de Almourol fechava o 
caminho aos wahs do Alemtejo e da Andaluzia. 

As ruinas, que vanos hoje debruçadas sobre o 
rio, contam aos que sabem interrogal-as mais de 
uma página da epopáa portugueza. Assentada so- 
bre um ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, 
C amontoados talvez ali caprichosamente pelo Ímpeto "^ 
de violenta irrupção vulcânica, as elevadas torres do J 
vdho castello, que as voltas do Tejo oraencobseife 
(H*a deixam descortinar de longe, erguem-se mutila- 
das e enegrecidas pelo hahto mirrador dos secailos. 
Grinaldas de heras pendurãmni-se ^ot festões das 

1 A balça ou bandeira do Templo era bipartída de bimnco e 
preto com a cruz vermelha no centro e a lenda: non nobis, sed 
nofittm tuo da gloriam. 



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o CASTELLO DE ALM^UROL #B 

wmas âesEioronadas, ou se arraiigam em tufos vi- 
resQtes nos mtersticios dos pamos^rotos das mura- 
lhas. O arrojo d'aquelles pend|^oâi, tko arremessados 
qae o dedo de uma creança parece ^ufficiente para 
os fazer escorregar com o muro que os coroa, para 
o leito do rio, espanta os olhos sobresaltados d'a- 
qaelle equilíbrio ousado e quasi milagroso. Areias 
accumuladas, e alguma terra de alluvião formam 
o solo, aonde cravam as raizes os choupos, ©s sal- 
gueiros e os chorões, cujos troncos torcidos se pen- 
duram de cima das fragas até roçarem as aguas com 
as ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em 
a^umas partes os penhascos aprumados, ou reben- 
tam das fendas das rochas meio precipitadas. Uma 
vegetação activa e luxuosa veste de verdura aquelle 
cahos de moles immensas sustidas ha séculos no 
meio da ameaça constante de uma queda instantânea. 
No anno em que passaram os successos, que re- 
fere esta veridicji historia, o aspecto do sitio era sun 
bronco e alpestre, como a natureza o formou, mas 
a assolação não o havia visitado ainda, agravando- 
Ihe a melancolia, Do lado do occidente quatro tor- 
res circulares, levantadas como sentinellas de gra- 
nito a egual distancia umas das outras, alçavam as 
frontes torvas e já tostadas do tempo. Entre a se- 
gunda e a terceira rasgava-se a porta actualmente 
intransitável do castello, com a sua volta de ogiva e 
grossos batentQS de castanho chapeado. No meio do 



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76 o GASTELLO D£ ALMOUROL 

guerreiro edifieio avidtava â torre de menagmn, e 
1(^0 adiante, em curto intervaUo, outra quadrada 
também, com os eirados cingidos de mneias. Uma 
janella ornada de layores em ramos, aberta a dob 
terços da altura, esclarecia os aposentos do segun- 
do piso, em (]uanto da parte oriental duas frestas 
do mesmo estyllo davam claridade á sala ae armas. 
Cinco torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a 
muralha subia a grande altura, acompanhando as 
sinuosidades do terreno. O cães ficava ao sul, e o 
fosso natural, que rodeava os muros, agora cego èe 
entulho, corria profundo e despenhado. No interiíw 
da fortaleza, aonde tudo hoje são minas e pedras 
soltas, enroscadas de ^ervas e de silvas, e aonde os 
cactus silvestres brotam gigantescos, era o pateo es- 
paçoso pw onde se entrava para os andares. Raras 
e esguias frestas allumiavam aquelles aposentos, 
pouco espaçosos, mas enfeitados de altas e ricas la- 
çarias. Em 1663 a obra da destruição principiava 
a annunciar-se apenas. Apesar de nuas, as salas 
ainda conservavam sua bellesa sevwa, e nos eira- 
dos e adarves, se não alvejaVa havia mais de tre- 
sentos annos o manto branco dos templário», se 
algumas heras, trepando, se balouçaViam á mereê 
do vento, e se as torres e muralhas mostravam já 
a côr adusta, que é para os monumentos o que são 
as cãs nos velhos, um testemunho irrecusável de 
que viram e viveram muito, não se tinham esmo- 



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o GASTELLO BE ALlfOUROL 77 

reeido, comtiuk), nem apagado ainda naihuns dos 
wstigios dos grandes dias de lucta. Aknourol no 
meio do Tejo, similhante a um tifâo com metade do 
corpo fora das aguas, ainda podia ameaçar forte e 
intacto, os que ousassem arriscar-se ao alcance de 
seus tiros. Firme e inexpugnável cuidava no vigor 
de sua robusta vdhice zombar dos séculos, como 
as ^eanças zombam dos annos, bem alheio de sup- 
por, que na transição da edade grave para a decre- 
fiàez sua decadência seria rápida, e que, espectro 
de granito, suas minas diriam ás gerações indiíFe- 
-rentes da nossa época, que eterno e grande só é 
Deus! 

Em uma das salas baixas da velha torre de me- 
nagem, toda de abobada, e ornada de mobiha rús- 
tica, estavam assentados, um defronte do outro, os 
dois ricassos da terra, ligados pelos vinculos do pa- 
rentesco, e mais ainda pelas raizes de interesses re- 
cíprocos. O feitor António Rodrigues ajudava piedo- 
samente seu genro e consócio Pedro Lavareda a in- 
gorgitar copiosas libações de um vinho, que escal- 
daria outras goelas menos estanhadas. Sobre a gran- 
de mesa de pau santo e pés torneados, que Servia 
de altar aos áok zelosos sacerdotes do Bacho dV 
quelles cont(^mos, avultava um alentado cangirão de 
barro, bojudo, e cheio Mé â boca. Principiara a 
anoutecer, e uma candeia enorme de três bicos^ si- 
iB&aole a monstruoso aranhiço^ allumiava a casa 



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78 o CASTELLO DE ALMOUROL 

escassamente. Duas espingardas, carregadas e enga- 
tilhadas, jaziam ao canto, pròmptas para servir á 
primeira voz. 

António Rodrigues era corpulento, espadaúdo, e 
reforçado. Faces largas e cheias, bastante roliças, 
pescoço curto e taurino, cabeça enterrada entre os 
hombros, peito amplo e bombeado, e pernas gros- 
sas e firmes denunciavam n'elle o vigor de um athe- 
leta unido a uma saúde inexpugnável. Inculcava 
apenas sessenta annos, mas os risinhos do seu tem- 
po punham-lhe mais dez sem receio de erro, e acer- 
tavam. Mas era uma velhice verde e jorial, que nãô 
se inclinava ao peso dos annos, que o trabalho não 
desfallecia, antes reanimava, -e que promettia, assim 
riçosa e robusta, chegar a um século completo, rin- 
do-se dos catharros, dos rheumatismos, e ainda 
mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo 
douto Esculápio, o licenceado de Tancos, seriamente 
amuado por nunca ter de receitar nem um xarope 
áquelle cliente invulnerável ás chuvas, aos frios, e 
a todas as temeridades, a que um mancebo se não 
atreveria impunemente 1 

António Rodrigues trajava á camponesa, com aceio, 
mas sem basofia. Gibão e calças de baeta escura, 
carapuça de lã, e o inseparável varapau ferrado na 
ponta constituiam o uniforme do activo IViptolemo. 
Uma grenha de cabellos grisalhos, crespos e bastos, 
descia a aflfrontar-lhe a testa, pouco sulcada de ra- 



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o CASKLLO BE AUfOUROL 70 

gas. O sorriso enroscava-se pereime nos beiços gros- 
sos e cerados. Conservava intactos ainda, e brancos 
de jaspe, como os de um tubarão, todos os dentes. 

CA bsffba baixava em andares sobre o peito, e os olhos 
c^S^ihos, pequenos, e maliciosos, afogados em gor- 
dura7dír-se-iiam que~ espreitavam tudo, meio en- 
côbartos. A voz aflautada causava espanto saindo 
d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz grosso e cra- 
v^ado de botões vinosos, náw^os como rubins, as- 
sumia dimensões quasi phenomenaes. A expressão 
da pfaisionomia ^*a dúbia. O observador no primei- 
ro relancear apenas notaria a beatitude do comilão 
rq[)leto e do bebedor insaciável. Attentando melhor, 
e, comparando o olhar, o gesto, e o riso mudaria 
pwem logo de conceito, divisando debaixo d'aquel- 
la mascara de Sileno hercúleo as feições moraes si- 
gn^ativas da astúcia, do egoismo brutal e desen- 
tranhado, e de uma eubiça incapaz pela avidez 
^transigir s^m^ a honra,jCQm a^qnsdencia_e çom^ 
o dever. 

Pedro Lavareda representava o antípoda de seu 
d%no sogro e tio quanto aos dotes physicos. Um 
helknista contemplando-os, tomaria um pelo alpha, 
eo outro pelo omega. O genro, magríssimo, quasi 
esqueleto, assustava os que o viam com o reeeio de 
que um dia lhe saltassem os ossos das tibias e dos 
femurs soltos das Ugaduras. Braços de pólipo, tmni-: 
nados por mãos e dedos eternos, hoo^ros agudos 



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80 o GASTELLO DE ALMOURCML 

sobre os quaes o fato dansava como posto em (áma 
de mn cabide, rosto comprido, escaveirado, e ma- 
cilento, acompanhado das melenas esgaias de mn 
cabello raivo e aguado, testa núa que chega quasiá 
nuca, peito e ventre espahnados, olhos vesgos, tortos, 
encovados, mas vivos ou siurrateffos, boca rasgada 
quasi até ás orelhas, e beiços finos e desbotados, 
compunham a lúgubre, carrancuda, e exótica pessoa^ 
do lavrador msds atilado, avarento e sem escrúpu- 
los d'aquellas immediações. Parecia fraco e a de^- 
zer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam 
andar legoas, os braços escamados encobriam uma 
força alem do commum, e os olhos vesgos só viam 
torto para os negócios alheios. 

Retrato vivo do aspecto mortificado de um fran- 
dscano penitente, o velhaco ria-se tanto para denfro 
como o feitor António Rodrigues se ria para í6n. 
Uzurario de nascença, hypocrita por Índole e ver- 
dadeira voragem de hquidos e sólidos, digeria ccmK) 
um abestruz e bebia como um areal. Quando con- 
versava, sempre em faUas mancas, sabia chamar a 
tempo uns frouxos de tosse e umas lagrimas de de- 
fluxo, que o ajudavam muito a engulir metade, eás 
vezes duas terças partes das palavras, e é mutil accres- 
centar, que as palavras enguMdas ^am sempre as 
que o podiam comprometter ou aproveitar aos outros. 
Quando o caso o requeria, Pedro Lavareda^ o va^u- 
dinario sadio, conv^a-se n'uma cascata de praa- 



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tos. Tinha as glândulas lacrimaes devassas e chiava 
moo um í^ocodilo. Ai dos innocentes que se deixa- 
vam (^ralhar easdokieer por dlel... Ficavam quasi 
swf re s^ camisa. No meio d'â(pieUe rosto afia- 
da ^^a-se um promontório imn^nso. Era o nanz 
adunco e aguçado na ponta, que descia quasi a bei- 
jar o lábio superior. Este nariz, delgado e membra- 
noso, rematava a semelhança que tinha aquellacara 
cem o focinho da fuhiàa. Esquecia notarmos que 
António Rodrigues exercia còm applauso geral as fun- 
eções de procurador de dous conventos de freka^ 
de quatro irmandades, e que seu genro accumu- 
lava com outros arrendamentos lucrativos a arrema- 
tação dos dizimos e premicias da cínnarca. 

— Os de Payo Pelle pagaram por fim? pergun- 
tou o feitor ao genro pousando o caneco despejado 
fôoíi cima da mesa. 

— Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. 
tiol respcmdeu Pedro Lavareda com um sorriso 
avinagrado. 

— ^Bem b(Hnl... Sa^s o que me dá cuidado agora, 
homem? É esta gente aqui mettida. Tomara vel-os pe- 
las costas. 

— Pois acabe de os empurrar para a rua, que 
não deixam cá saudades 1 redarguia o outro com meio 
sorriso acido. 

— ^Isso é fácil de dizer, mas-.. Ao cabo de tudo, 
Pedro, bem vês, os donos da casa são elles!... 



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82 f o €AS»LLO DB AUmmOL 

—Que vão comendo as rendas e que nos d^xem. 
Tão más são ellas!... . 

— Huml Poiam ser melhores... Esse é o meu 
receio. Trazemos isto muito de rastos, Pedro, e al- 
guma lingua ruim. lh'o disse já ou lh'o ha de di- 
zer. 

—Invejas 1 fallatoriosl . . . acudiu o genro entre dous 
frouxos de tosse. 

— Pois siml... Olha, não seria melhor offerecer- 
mos um nadinha mais pelas terras e ficarmos com 
ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a castanha 
na boca uma d'estas manhãs?! 

— Nanja eu, tiol Sangue ninguém m'o tira á boa 
feição, e o dinheiro é sangue... 

— Mas homeml?... 

— Deixe lá, sr. sogro, não se metta a abelhudo 
aonde o não chamam, e deixe ir a agua ao moinho. 
Já alguém fallou em lhe levantar a renda da alcai- 
dasia?... • 

-r-Não. 

— Pois não faça andar o cairo adiante dos bois, 
e coração á larga. O que for soará. J 

Hçuve um minutoTde pausa. António RoérigiKS 
coçava a nuca com o indicador e o dedo médio da 
mão direita por baixo da carapuça, e rufava sobre 
a taboa da meza com todos os dedos da mão esquer- 
da. As roscas da barba sumiam-se-lhe na gollaalta 
do gibão, e os olhinhos, homisiados entre as palpe- 



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o GASTELLO DE ALMCHJROL 83 

bras meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como 
os do gato matreiro que espreita a presa. Pedro La- 
vareda, menos apprehensivo na apparencia, limpava 
os olhos chorosos com um quadrado de panno de 
Unho, em quanto a unha tigrina de um dos dedos 
da outra mão raspava uma nódoa conhecida e tei- 
mosa do calção sobre o joelho. Ambos meditavani 
e se entendiam sem fallar. O feitor de repente levan- 
tou meio corpo de cima do mocho de pinho em que 
se assentava, colheu o cangirão pelas azas, sopesou-o 
por um instante, e emborcando-o, encheu os dous 
canecos de louça. Levou depois o seu a boca, en- 
curvando lentamente o braço, e despejou-o em pou- 
cos sorvos, emquanto o sobrinho, coleando primeiro 
a lingua pelos beiços, libou com mais vagar e com 
gestos de amador consumado o néctar^ que espuma- 
va na grosseira taça. 

— ^Rapaz, isto não vai bom!... tornou António 
. Rodrigues com um suspiro. Anda mouro na costa, 
que eu bem o sinto e cá sei os botões com que me 
abotou-o. Esta gente de Lisboa aqui não gosto na- 
da d'ella. 

— Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem 
medo? A aya é uma tonta, uma pega douda. O es- 
cudeiro não passa de um espantalho de pardaes, e 
os meninos.... leram tanto quetresleram. Mostre-lhes 
um campo de cevada nascida de wto dias, e verá se 
não lhe dizem que é trigo. 



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8< o CASTELLO DE KLUOVKOt 

— ^Mas atraz da pêgae do espantalho tenho mmto 
medo que venha o milhafre!.. 

—Qual milhafre?!... 

—O frade!... munnurou o feitor em voz abafada 
e com signaes de verdadeiro susto. 

— E então se vier?!... Lê no seu breviário! 
O Sr. Fr. João Coutinho sabe muito de leis e de 
casos, mas de lavouras não creio... 

— Nisso te enganas. E' capaz de dar sota e a2 
ao mais pintado!. Creou-se no campo e adminis- 
trou muito tempo os bens do convento. . 

—Ah! Ah!... 

— ^E tenho meus longes de que, mais dia menos 
dia, ahi o temos pela proa com a Sr. D. Magdalena. 

— ^Mau serál... rosnou entre dentes o sobrinho 
declarando com a unha do polegar crua guerra a 
uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Máu 
será, tio!.... Mas não havemos de perder o somiio 
por isso. Dizia no mosteiro, aonde me ensinaram, o 
padre mestre Fr. Hilário, que para todo o género de 
peccado deixou Deus remédio na sua egreja... 

Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o 
outro calados mas pouco satisfeitos. 

— ^Então que dizes, homem?!.. 

— Se o frade vier.... é pôl-o ao fresco, em vinte 
e quatro horas. 

— ^Estás mangando, sobrinho?!.. Pôl-o ao fresco? 
O mnãoda senhora, o tio dos meninos?!... 



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o GA8TELL0 DE ALliOQIIOL 85 

— ^Tâl es qual. Nem mais, nem m^os! Sacadil-o 
e depressa, 

—Oral Bugalhos, sr. meu gem^l.., Sacudil-o?!. 
Como?-. 

— ^Mettendo-lhe medo. 

—Ao sr. Fr. João, que é rijo como ferro evalen- 
tb como as armas? L.Vai dormir, Pedro, isso é som- 
00. *. 

— »Sim sr., metter-lhe medo, porque não?... 

--»Gom as aímas do outro mundo, aposto, como 
tens feito á lambareira da aya e ao néscio do es- 
cudeiro? atalhou António Rodrigues com uma rizada 
deéscameo. 

—Com as almas do outro mundo, sim senhorl... 
Cuida que o frade não foge?...Hadevel-o em camisa 
no pateo, mais branco do que os lençoes da cama. 

— ^Deixa-te de historias, Pedro!... As visões com 
o frade não pegam. O que apanhas é algum tiro.... 
e dha que é caçador que não Srra. 

— Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me 
o negocio, e verá.... 

— Emfim, lá sabes as linhas com que te coses... 
Mas toma sentido comtigol O frade é ladino, sei que 
vem desconfiado de nós, e tenho muito amor á 
pdle. • 

--^Socegue. Eu também não tenho ódio á mi- 
nha. Diga-^ne: se Fr. João vier, aonde o mette? 

—Aonde o metto?L« Porquê? 



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86 o GAStELLO DE ALMOUROL 

—Preciso saber. 

—No quarto verde talvez... 

—Nada! Dê-lhe o quarto dos armários. 

— Mas!...^ 

Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso <m)- 
çàndo sempre a nuca. O genro ria-se para dentro, 
raspando a nódoa do calção. 

— Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? 
Tanho medo de ti e do teu risinho. 

— Pois não tenha. Hade tudo correr como um brin- 
co, louvado Deus e sua mãe Maria Santissima. 

— Maul... Se me resmungas nomes de santos 
temos maroteira e grande!... Pedro!... Toma cuida- 
do! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agu- 
lha no sr. Fr. João.... Não épor elle, épw mim. Na- 
da de graças pesadas! Não me quero ver na cadeia 
comido de pés e mãos. Leve antes a breca as ter- 
ras. 

— Ai, tio!.. Não se faça temioso,e não esteja ca- 
lumniando as minhas intenções.. Valha-me a Senhora 
SanfAnna. 

—Mau! Tomas aos santos!... Que é isto?... 

— São passos, 

— E vozes... Chega á fresta e vê! 

Pedro Lavareda obedeceu. 

Um vento rijo e chuveirões puxados com força 
bateram-lhe na cara, apenas abriu o pesado cai- 
xilho, e arriscou a cabeça para espreitar o que se pas- 



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o eASlIELLO PE AX4BÍOUROL 87 

sava no rio. O devoto personagem recolheu á pres- 
sa o interminável e esganado pescoço, rosnou duas 
interjeições apimentadas, e, enrolando um lenço por 
cima da gola do gibão, tomou a affrontar, porem 
mais abrigado doesta vez da fúria do aguaceiro. De- 
corridos instantes de attenta cèservação, metteu-se 
para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se de- 
fronte do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. 
Trazia estampada no afunilado rosto uma verdadeira 
elegia. 

— Então?!... disse o feitor já sobresaltado coma 
mimica tétrica do sobrinho. 

— Fallainomau^ apparelhaiopau!... È o frade!.. 

— Hein!? bradouAntoiuo Rodrigues, pondo-se de 
pé de um pulo e enterrando a carapuça até aos hom- 
bros. O frade?!. 

— Em corpo e ahna! Escripto e pintado!... Tem 
razão, tio. Anda mouro na costa. 
. — Vem a Senhora D. Magdalena?... 

— Não. Vem elle só. Isto leva agua no bico, sr. 
meu sogro. 

— Não te dizis^ eu, Pedro?... E agora?.,. 

— O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na 
rua. 

— Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando 
tudo isto muito a chamusco. Não gosto nada da vin- 
da do sr. Fr. João assim com este segredo.... Re- 
ceia... 



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89 o GASTELLO DE AUIOIJROL 

— Valmervnt galhetas, sr- meu tio ! como nós di- 
zíamos no convento!... Ocaso está feio, e d'esta vez 
a raposa bem podia ficar sem rabo !.. melbor, porém, o 
ha de fazer Deus e sua Mãe Maria Santissima, minha 
madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos ou- 
tra caneco. Este bom vinho alegra a vida e faz crear 
âkna nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber o sr. Fr. 
João, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada. 

— E tu?... 

— Eu... Fico para pôr em ordem umas cousitas. 
Escute, meu tio! Dê ao sr. Fr. João o quarto dos 
armários. E' essencial. 

—Porquê?,.. 

— ' Pelaboccamorre opeiíel... Depois verá. Adeus! 
Não faça esperar sua reverendíssima e encom- 
mende-me nas suas orações á minha devota Senhora 
Santa Anna... 

— ^Mau!... Ahi tomas tu com a ladainha dos san^ 
tos!... Pedro!... Olha lá?.. Cuidado com a peUe do sr. 
Fr. João! 

— Yà, descansado, tio, não hade haver novidade. 
V^n ceia*? 

— Venho. 

— Até logo. 

E os dous consócios e parentes separaram-se. 



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ffl 



— Cóm que então solto anda o demónio por estes 
palados confusos, e afflictos nos vemos com as suas 
diabruras, Brizida de Souza !?. . Muito me contam 1 Mau 
é issol... E vossê que diz, Romão Pires? Parece ainda 
mais pasmado do que esta boa velha!.. . Vamos lá, 
sr. António Rodrigues, diga-me: aonde é o quartel 
general de Belzebut? Ha de saber de certo. Ê de casal 

— ^Eu, sr. fr. Joãol... Sei só que não se pôde pa- 
rar aqui da meia noite em diante!.. 

— Ah! sabe isso!?... Ja não é pouco! Pois eu 
lhe digo: cuidei que sabia mais. Acho-o tão roliço e 
anafado, que vejo que engorda com os sustos. 



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90 o CASTEIXO DE ALMOUROL 

— O sr. Fr. João gosta de brincar, mas em pas- 
sando mna ncnte aqui!... 

— ^Ai, meu Jesus da minha almal Anjo bento ^ 
Nossa Senhora Apparecidal... Ê dagente botar a fu- 
gir, ou de perder ojuizol exclamou a sr.* Brizida, 
pondo as mãos. 

— ^Kntao o sr. António Rodrigues crê que esta 
noite haverá ensaio geral de Satanaz e da sua corte, 
cara festejarem a minha chegada?... Muito bem! Cá m 
«estamos. Cor contríctum etkumiliatum deus non des- 
piciet! Pelejaremos com as armas espirituaes, que 
são as melhores, e com as temporaes, que também 
servem em certas occasiões! Mas ccrno vamos de 
ceia?.. No barco o mau tempo fez-nos jejuar, e sin- 
to-me capaz de tragar um carneiro assado! E o vi- 
nho, aquelle bom vinho de 1655, ainda havOTá por 
cá uma gota d'elle? Ha de haver, O sr. António Ro- 
drigues, o melhor copo de Tancos e seus arredores, 
aposto que mo está desprovido de munições de 
guerra? 

António sorriu e coçou a nuca. 

— A ceia está ao lume, e não se demora três 
(»*edos. Quanto ao vinho.... esteja vossa reverendis- 
sima descansado. 

— Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito 
paHida a sr.* D. Maria. Ella tem passado peior?-. • 

— ^Não, sr.! Peior não. Mas, com o susto doestas 
iK>ites sem sonmo, a minha rica n^nina tem perdido 



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o CASf ELLO DE ÂLMOUROL (H 

as córes.EUa é tão deHcadiíiha^ tão fracal.. Ó sr. fir. 
João, a menina não podia ler um nadinha menos, 
mais o sr. D. Pedro, e respirar mais algmn ar em 
Lisboa? 

— Não pode, não senhor!... acudiu o frade em 
voz de trovão. Meus sobrinhos não se educam para 
espantalhos de sala!...E vossê é muito atrevida em 
se metter a dar conselhos aonde a não chamam t... 

— Ai4oce Jesus do meu coração! Que disse eu 
para ouvir uma repostada jassim?!.. Sabe que mais, 
sr. fr. João? Nãô sou moura, nem perra, nem capti- 
va. Pão em toda aparte se come, e se não fosse o amor 
dos meus meninos, por esta (e beijou os polegares 
em cruz) que não aturava uma hora mais n'esta 
casa! 

— ^Está bom, Brizida de Souza, está bom! Não 
se inflamme. Sabe que a estimo, que todos em casa 
lhe queremos muito.... mas não me toque n'essa 
eórda. Sei que me acusam de apoquentar os peque- 
nos com os estudos, e que elles imo teem uma tosse, 
uma febrita, de que se não torne logo a culpa aos 
meus livros!... 

— Vale mais asno vivo, do que doutor morto!» 
resmungou a velha ainda irada e incorregivel. 

— Mas eu é que não quero na minha íamilia as« 
nos.... vivos, ou mortos, mulh«rl — ^bradou o frade 
fâ2en(k)*se c6r de purpura e sorvendo duas pitadas 
eom o ruído de ma furacão. > — Safa!* Vossê é capaz 



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02 o GASTEIXO DE ALMOUBOL 

de fazer perd^ a pacienda ao próprio Jdb!... Bemi 
Não fallemos mais n'isto, e não faça caso dos meos 
repentes.... Sabe que não sou tão niau como pareço 
e que trago sempre no coração os meus dois rapa^ 
zes... 

— Sei! Seil Por isso digo a todos: o sr. fr. JoSo 
berra, esbraceja, é um destemperado, mas passa-lhi) 
logo. Cão que ladra não morde. Livre-nos Deus da 
uns sonsinhos que não quebram um prato^ mas quA 
ferram o dente calados..,. 

— Obrigado pelo elogio f... ou antes pela boa In- 
tenção. Chame os pequenos. A ceia ha de estar na 
mesa; e protesto que jne atiro a ella como Santiago 
aos mouros!.. Vamos. 

A ceia correu farta e alegre, e António Rodrigues 
foi homem de palavra, regalando o hospede comal- 
gpaas garrafas de vinho maduro, que Fr. João pro- 
clamou rival do melhor que se podesse beb^á me? 
za de el-rei. As proezas gastronómicas do erudito 
dcMninjcano tinham assombrado o próprio feitor, cif- 
jo estômago insondável sepultava sem incommodo ali- 
mentos de todas as qualidades, e se carregavade (piaii- 
tidades que eram o espanto e maravilha dos que as- 
sistiam ás suas repetidas campanhas pantagrudicas. 
D'esta reputação merecida António Rodrigues viu- 
se obrigado a arrear bandaras. O padre mestre não 
comia, devorava, pão bebia, absorvia! R^anáo. de 
cq)iosas libações cada iguaria rústica, absolvendo as 



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GASTELLO DE ALMOUROL 9^ 

indigestas com um exorcismo ettlinarío^ fazendo des'- 
apparecer do prato as menos pesadas com milagro- 
sa tlapidez, dir-se-hia que a fome ibérica e peninsu- 
lar, a fome de dentes caninos e apetite insaciável, 
tomara a figura corpulenta d'aquelle frade, para rea- 
lisar em Tancos uma verdadeira razzia. Tudo tem 
de acabar, porém, e Fr. João, exalando um suspiro, 
e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a 
empreza por concluida, murmurando com os olhos 
meio fechados, e a voz ainda suffocada do esforço: 
Deus núbis hcec otia feciti 

O reverendo, nà meia somnolencia em que se 
deixou ficar, recostado no espaldar de couro davas- 
ta poltrona, com as faces afogueadas, e obarrelinho 
de seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, 
não offerecia de certo a imagem dos piedosos e ex- 
tenuados monges, que em epochas de mais fé edifi- 
cavam os fieis com o exemplo de sua vida frugal e 
cóntricta. Parecia mais um hippopotamo encalhado, 
do que um devoto filho de S. Domingos. Os instin- 
ctos anrmaes prevaleciam, e a fadiga de uma diges- 
tão laboriosa fazia arfar aquella machina de masti^ 
gação continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam 
o tio com a admiração sincera de creaturas deUca- 
das, que semelhantes excessos não só confundem, 
mas atterram. Brizida persignava-se e enfiava os bu- 
galhos do seu rozarío em oração atribulada, esperan- 
do ver desabar de um momento para outro o padre 



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94 o GA8TELL0 DE ALMOCROL 

colloçal fulminado por um ataque apopletico. Romão 
Pires ainda não poderá articular palavra, embuxadb 
com a vista da voracidade incrível do irmão do seu 
amo. António Rodrigues, cujos olhinhos matreiros 
semelhavam no brilho duas scenteUias, desfazia a 
nuca raspando-a desesperadamente com a unha, e 
dizia comsigo, que o frade, medindo as forças pela 
aUmentação, devia prostrar um touro com um mur- 
ro, e abrir um tigre em dous, como o faria qualquer 
mastim faminto ao gato descuidado, que lhe caisse 
debaixo das prezas. 

— Deus nobishcec otia fecit! tomou arepetir Fr. 
João depois de uma pausa de alguns minutos, recupe- 
rando acostumada viveza e agilidade. — Podemos dizer 
com verdade que ceiamos como uns padres!.. Mi- 
nha sobrinha 1 Não gostei de a ver tão triste. Que 
nuvem pesa sobre esse coração? São receios, ou 
saudades?!.. Socegue que o hade ver são e escor- 
reito.... 
— Quem, meu tio? atalhou a donzella distratada. 

— Pois quem hade ser senão aquelle cavalleiro 
andante que se despedio de nós e que hade voHor 
um dia d'estes coberto de louros..., Entendeu-me 
agora? 

— Oh, meu tiol... acudio ella fazendo-se verme- 
lha como uma roza. 

— Está bom! Está bom! Não digo mais nada.... 
Romão Pires sabe que os castelhanos tomarsffiii Evc^ra, 



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o GAflfELLO BE AUKmtOL 9S 

e cpe a estâshcH^ Ião de estar ás nãos ecnn o nos- 
so exercito?.. O cpie diz vossa sapiência?.. Quem 
veace?!.. 

— Essa é boa, sr. padre mestre 1 Quem deve ven- 
cer 1 O sr. conde de Villa Flor. 

— Deus o ouça! Bom éter fél.. Mas! — ^E a larga 
fronte do frade enrrugou-seaprehensiva, em quanto 
os.solwrdhos descahiram a ponto de lhe cobrirem 
quasi as pálpebras superiores — Deus super omnial 
nvormurou. 

Seguiram-se alguns instantes de silencio. De re- 
pente, a porta abriu-se com estrondo, e a longa, a 
defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou impetuo- 
samente pelo aposento, com os olhos espantados, as 
faces contraidas, e os cabellos ruivos espetados, re- 
presentando a imagem viva do terror e da conster- 
nação. 

— Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi 
vem!... 

A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos 
se acharam de pé, não menos assombrados do que 
parecia estar o núncio da nova atterradora. 

— Os castelhanos!?., gritou Fr. João, saltando 
da cadeira e empunhando machmalmente uin bas- 
tão enorme, espécie de clava, que o acaso lhe mos- 
trou encostado a um canto. 

— Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, fal- 
taBdo-lhe os joelhos e ^guendo as iwos. 



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d6 o GA8TEUD DE A1M0!7IU)L 

— Os castelhanos?! exclamou AnUmioRodrigTOS, 
arrancando da cinta a longa navalha de ponta e de 
mola e floreando-a como uma espada, em quanto 
Romão Pires sacudia da bainha a durindana decré- 
pita e preguiçosa. 

D. Maria, branca de cera e silenciosa, encostou-se 
á mesa para não cair. D. Pedro, pelo contrario, 
com o rosto mais animado, os olhos rehizentes, e 
a fronte levantada, apertou o punho da pequena es- 
pada de corte, e deu alguns passos como se quizesse 
sair ao encontro do perigo. 

— Os castelhanos?! tomou a bradar Fr. João. Ás 
armas! sr. António Rodrigues chame os criados!... 
Façamos de Tancos e de Almourol uma segunda 
Aljubarrota!... 

Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e 
fulo de raiva e de impaciência batia o pé como o 
corsel insofrido escarva o chão desejoso de soltar a 
carreira. 

— Mas não seria bom, meu tio, sabermos primei- 
ro o que ha, quem deu a noticia, e aonde estão os 
inimigos? observou D. Pedro em voz mapsa e com 
extrema serenidade. 

— Do manus! Rem acu tetegiste, píer/* gritou o 
frade sentando-se commovido e ainda tremulo. Faça- 
mos conselho! Sr. António Rodrigues, em primeiro 

1 Coneorâo. Aizeste o âeda na diffieidddde, m^ao. 



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o CASmUO Dfi ALMOmOL 97 

logar: qoem é e cwèo se chama e«te ccOTáodeinás 

— É meu geiu*oemeu sobrinho. Chama-se Pedro 
Lavareda. 

— Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendia- 
ria e perigoso &n pessoa maissecca do qae um ca- 
nco!.. Mas vamos ao (pie importa. Chegue â falia 
o sr. Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a mânoti- 
da que nos trouxe?... 

— Um ahnocreve do Crato, que saiu de lá a bom 
fugir!... 

— E que disse o ahnocreve?... 

— Que os nossos foram derrot^os, que ficaram 
todos ou quasi todos no campo, e que as guardas 
avançadas de D. João de Áustria estavam a entear 
no Cratol... 

— Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde 
se deu a batalha? 

— Não m'o soube dizer. 

: — Hum! E o seu ahnocreve aonde está?... 

— Partiu, caminho de Lisboa. 

— Oh! E não sabe mais nada? 

— Mais nada, sr. padre mestrç. 

— Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seunome quei- 
ma!.. Quer um c(mselho de amigo?... 

—Se vossa reverendií^ima úver a caridade de 
m*o dar!.. 

— Teidio sim, senhor. Mande passear o seu ahao- 

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98 o GASTELLO BE ALMOtJROL 

creye, durma sobre o caso, como nós vamos àorrm, 
e creia que amanhã acorda convencido de que en- 
gulio uma peta mais comprida do que a sua pessoa, 
o quê já não é pouco. 

Os olhos fehnos de Pedro, se fossem punhaes, te- 
riam varado o frade, mas como o não eram, conten- 
taram-se com a expressão humilde e hypocrita de 
uma antiuencia servil, ao passo que os lábios franzi- 
dos arremedavam sofrivelmente um sorriso boçal 

— Macte puert gritou Fr. João, batendo no hom- 
bro de D. Pedro. Tiveste maisjuizo tu só, do que nós 
todosl... Isto é mentira e mentira mal armada. Os hes- 
panhoes no Gratol... Uma batalha sem logar sabido!... 
Um almocreve invisiveU. .. Meninos, socegueml TiaBri- 
zida, alma até Almeida IR^mão Pires, enfie-me na bai- 
nha esse eterno chifarote, espanto e censura viva das 
espadas de hoje!... 

— Então vossa reverendissima já não quer que 
ponha de aviso os criados? disse António Rodrigues, 
que tivera tempo de trocar algumas palavras com o 
genro, coUoquio, que apesar de curto, não escapa- 
ra a Fr, João. 

— Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bas- 
tam logo âs almas do oufro mundo!... Sabe que 
mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de 
uma boa ceia é o melhor remédio para estas molés- 
tias. Aonde é o meu quarto? 

O fátor ei^ebôu um volver de olhos interroga- 



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o CASTEXLO DE ALMOUROL 99 

dor ao sobrinho, qfae lhe respondeu com um ace- 
no quasi ímperceptivel de cabeça, e, pegando em 
um maciço castiçal de prata denegrido, precedeu 
a espécie de procissão de toda a familia até ao 
aposento, aonde o douto dominicano havia de pas- 
sar a noute. A porta abria-se no topo do com- 
prido corredor do centro; a camará de D. Pedro 
ficavâ-lhe á esquerda, e o pequeno camarim de 
Romão Ph^es a direita. Mettiam-se de permeio 
dous quartos fechados, e seguia-se a sala aonde D. 
Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brizida de Sousa. 
O aposento, aonde António Rodrigues conduzia Fr. 
João, nada inculcava de notável. Era uma casa vas- 
ta, de três janellas, duas de peitos e uma sacada, cu- 
jas paredes abertas em partes conservavam ainda 
a par de largos pedaços das colgadurasde couro, que 
em melhores dias as tinham ornado, ahos e grandes 
armários de pau santo. Os tectos altos e enegreci- 
dos e o pavimento carunchoso, gemendo e estalan- 
do com o peso dos passos, atestavam a velhice é o 
desamparo. Um leito antigo, enorme, com sobreceu e 
cortinas out'rora verdes, um velador de pau santo 
arruinado, e um contador, ainda mais antigo, com- 
pletavam com três, ou quatro cadeiras coxas dos pés, 
ou mutiladas dos braços, a mobilía nada commoda, 
íiem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em 
que a destruição minava, e ésfaíelava tudo, as uiíi- 
cas cousas intactas e bem conservadas ei^m alpns 



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ifíO ó CMermãAi de Àimsfsmb 

painéis grandes, retratos de corpo inteiro de guer- 
raros, damas, e monges, pintados a óleo, e metti- 
dos em sob^bas molduras de carralka, lavradas de 
fadhaalta. 

O padre mestre rodeon eom oscdhos toda a casa, 
e perguntou, sorrindo-se, ao feitor, se ella passava pw 
sev tatnbem vexada pelas almas de outro mun- 
do. António Rodrigues abaixou a sua immm- 
sa e redonda cabeça, e Brizida boizeu-se devota- 
mente. 

— Bem!... N'esse caso é preciso estw »nado e 
vigilante para a batalha! Se escaparmos aos caste^ 
ttianos do Grato, não quero que acabraM)s nas gw- 
ras dos trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonie 
Rodrigues, faz favor! Mande trazer para aqui o m^ 
alforge,, que ficou na sala de entrada. Sr. Pedro 
Lavareda (exquisito nome (!)) é bom caçador por 
certo, e hade ter uma espingarda de mais. Eu tam- 
isem gosto de dar o meu tiro demanlâ cedo ás per- 
dizes e ás calhandras por essa chameoa. Conto k- 
vioitar-me c(»n o sol, e dar um passeio pdasfazm- 
das, para tomar a ver estas terras ^n que lâo po- 
nho os olhos ha um bom par de annos. Para não ir 
com as mãos abanando levarei a sua espii^arda.^ 
Nfio a heide tratar mal, descanse!.. 

— Essa é boa, sr. Fr. João! A espingarda, eu, e 
tbdo o que maodiar estão ás ordens de vossa revê- 



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-^Milito d^a^]... Olhe não se esqoeça de me 
traz^ mn frasqirâho de polv(»*a. 
• O tio e o s(^riiÀo sairam, e o frade, chamando 
de parte a D. Pedro e a Romão Pires, e pondo as 
nãos no hou^ro de cada mn d'^s, disse-lhes em 
w% baixa: 

— Lata (mguist Anàdi aqui novellol Este sr. 
La^^treda, com acpidUia face compmigida de Longui- 
idios, psurece-me fino como um alambre... Os dons, 
eUe e António Rodrigues, o tio e o sobrinho, estão 
conjurados contra nós... Porquê e para quê? Otmipo 
o dirá. X)Uio ¥Ívo, pois, Romão Pires! Se lhe appar 
recer i^são, ou espectro, recd)a-m'o ás cutiladas. Ea 
eá espero a pé firme os que vierem visitar-me, e a 
agua benta, que lhes deitar, hade chamuscal-os de 
veras.,.. Muito beml.. Ahi vem os dous velhacos. 

De feito o sogro e o genro chegavam, um com o 
alforge, e o outro com a espingarda e o frasco. Fr. 
João fallou um pedaço ccnn eUes, sempre com a bo^ 
cak dmdí 4e riso, pedio vma^ candeia grande para se 
alkmnar até pela manhã, e despediu-se de todos> 
sem dar mosli^ da menor desconfísoiça. 

— O padre prega-f a na menina do olho, sobri- 
nlK)I Toma contai disse António Rodrigues com o 
rosto carregado. 

—Veremos, sr, meu tio. 

— €kiarda4e de eUe te pdr asndkis. E' cs^paz de 
estourar um boi. 



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10$ o CÀSTELLO DE ALMOmOL 

— Melhor o fará Deusl 

— Boas noutes. 

— Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora 
o levem na sua Santa gaarda. 

— Sentido! Nem uma beliscadura! 

Em quanto os dous honrados camponezesconver- 
sayam em voz baixa no fim do corredor, Fr. João 
Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e pa- 
recia ficar inteirado de que as paredes e os armá- 
rios não encobriam portas falsas, nem os sobrados 
alçapões. Abrindo o alforge depois, tirou de denfro um 
par de pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou 
as escorvas, e passando á espingarda, carregou-a 
com todo o cuidado, metteu-lhe uma bala,e pousou-a 
engatilhada á cabeceira da cama. Feito isto foi 
â porta pé ante pé, descerrou-a de manso, e em 
passo subtil encaminhou-se ao camarhn de Ro- 
mão Pires, aonde se demorou. A' volta — davâm 
onze horas — achou tudo como o deixara, reaou 
pelo seu breviário, e despindo só o habito, abafou-se, 
conchegou as colchas, recostou a cabeça, e, de- 
corridos instantes, os roncos assobiados de um 
soHino profundo aanunciavam que tmha esquecido 
os castelhanos do Crato, as^ almas penadas, e os vir- 
tuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade mo julgara 
de bons quilates. 

Teria repousado duas h(^as, quando de^rtou 
sobresaltado. O leito, pesado e maciço^ arfava ba- 



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o GAmsu^o DE Airnm^ yn^ 

lôuçado cc»no um barco sd)re vagas inquietas. O 
frade ^tre-abriu os dhos. A vela do castiçd estava 
^ín um t^ço, e £), luz da candeia brilhava esperta. 
O quarto continuava deserto e silencioso. Entre- 
tanto o leito não parara de dausar, e, facto mais sin- 
gular aiiida! a roupa da cama fugia òb vagar, sem 
apparecer mão, ou braço que lhe tocasse. Fr. João 
deixou-se ficar, tomando somente uma posição que 
U^ ccmsentisse saltar ao chão de um pulo para travar 
a lucta com os duendes e spectros. Tinha as duas 
jftstolas sobre o velador á cabeceira, e a espmgarda 
ao pé. Entretanto j apesar de animoso e resoluto, o suor 
principiava a borbulhar-lhe na testa, e um calefrio 
suspeito a correr-lhe a espinha dorsal 

— Isto naõ vaebeml.. Queria antes ruido, grilhões 
arrastados.... a scena do costume. Esta calada e es- 
tes empuchões invisiveis.... sinceramente seria de 
fazer tremer as carnes, se eu não soubesse 1... Ore- 
dol.. Lá se foi a roupa até aos pés da cama... Não 
gosto da graça! Que é aquillo? As pinturas an- 
dam!?.. Ohl... 

Aqui poz termo ao solilóquio, e sentando-.se na 
cama, com os poucos cabellos, que lhe restavam, 
erriçados em volta da calva, com as feições contrahi- 
das e. a boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas 
e dilatadas no painel qne lhe ficava fronteiro e que 
representava um cavalleiro da edade média cobaio 
de toda a armadura, mas com o ro^to sem viseira e 



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os ofiios aneaçadknree. Aqodk %sa seTcm, mm 
que destacada da oaoldiiFa, parecia mov^-se ipor á 
leabi e higubreineBte. Fr. João qiúz àividar do tes^ 
temunho dos sentidos, e comencer-se de cpie era 
fíctima de uma illifêão. Esfregou as palpet»ras, be- 
liscou os braços para despertar a seHsibilkbde, mas 
o retrato coatinuayaaadiantar-se, eum soiriso tètn^ 
CO como que Ibe franzia os baços. Ao mesmo t^atqp» 
osiHiYidos afiados do dominicano colheram, não sem 
grande pavor, o som amortecido de ferros que ran- 
giam, e um^emido longo e soturno, semelb^uíite ao 
gemido doloroso deafflictiyo estertor. 

— Vade retro, Satanaztwxmàxxron saindo da cama 
cheio de tearror. Ne no$ inducas m terUaíianet 

Apenas soltara a meia voz estas palavras, um so- 
pro, semelhante a fruracão medonho, engo^hou-se 
pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes. 

Fr. João recuou até ás cortinas do leito, e sentiu 
vergarem-lhe os joelhos, e fugkr-lhe o animo. Est^íi^ 
^mlo a mão nas trevas machinalmente, encontrou 
uma das pistolas pousadas sobre o vdador, e os de^ 
dos apertaram também machinalmente a coronha. 

De repente um clamo sulcou a escunda^, ^dchen- 
do o aposento de luz sulphurea, e no mm de chammas 
Uvidas, surgiu e a*eseeu uma forma gigantesca envolta 
nas dd)ras de sudário branco e fluctuante. Esta fi^ 
gmra (kseommunal, cuja cabeça era uma caveira, lan* 
cava chimpas pdias cavidades dos ottios, e acenava 



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o CAifKLO BB àiMmmoL IW 

tim 08 hàgêB cmm de esqueleto. O frade tremra> 
e-âCMyram-ttie aos hbm descorados as jM^eces e oe 
exeitimos reooinnmidadospáa igreja contra os ma* 
leidos infmiaes. Mas as armas espirítaaes nio pro- 
doaram efl^to, -e, s^esar da p^rturba^ momentâ- 
nea, tCMrnoa a tomar ccnrpo no sm espirito a ideia 
de que po^ sar aqa^ espectáculo uma visualidade, 
eiffiaiada para zon]d)ar (k sua boa fé. Reve^do-se, 
poiSjdevaJwededsão, sqfKmtourapidamente ao vulto, 
que tinha diante, a fHStola, que não largara da mão» 
e di^arou-a. Observando que o tiro não causara 
abalo nophantasma, pegou d^is na outra pistola, 
e com pontaria mais segura desfedbou o gatilho. 
Uma risada estridente respondeu ao estrondo da ei- 
I^osíão, e o spectro, mostrando as duas balas, arre- 
messou-as ao chão, aonde o padre mestre as ouviu 
rolar. L<^o em seguida o clarão sumiu-se de súbito» 
e^)e8sas trevas envolveram o quarto. Fr. João, quasi 
deonaiado, caiu em uma das cadeiras proxunas do 
1^, tdhido por um tremor g^ral em todos os m^n- 

/Ims, e paraUsado na fala e nos movimentos pelo 

Cssais prdundo tent»". 

Ao mearão tempo as hostilidades diaboUcas nSo 
eram menos activas e violentas nas camarás dos ou- 
tros hospedes. Romão Pires, s^nas se deitara, e es^ 
ccmd^a a cabeça dd)aixo da roupa, com premeditar 
ção pouco em harmoma com os Imos de suas Ms^ 
dag campanhas, sentio i^^agar-se-lhe a hiz, e puuh 



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166 o dâSfElLa DE AUfOeaOL 

FemiLlie pdos pés o magno e aprumado eorpo afteo 
estatelarem de pancada e sem dó nas taboas do so- 
brado. O grito de medo e de dor, que soltara estre- 
mmihado, teve em resposta mn coro de lisadas em 
falsete. Brízida de Souza acordou espavorida ao frio 
gelado de um v^dadeiro regador de agua que lhe 
ent(HTia¥am sobre a cabeça, e saltando por a casa 
em roupas menores, e com a boca escancarada, para 
bradar, era colhida no ar por mãos pouco caridosas 
e nada leves, que de empurrão em en^Hurão a leva- 
ram aos tombos até ao corredor, aonde veiu encon- 
trar em anágua o honrado escudeiro, tiritando de 
susto e com uma das mãos em cada face esbofetea- 
da pelos duendes,, oom vigor que b^n accusava uma 
força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-mor-/ 
1 ta de pavor, não padecera senão o terror de ouvir 
/ estsdar ao pé do leito gargalhadas dissonantes, e 
arrastar ferros. 

No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido 
menos felizes, porque tinham ch^adomaiss^azados. 
Dotado de animo varonil e reflectido, sereno em 
presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na 
intervfençãQ dos poderes infwnaes, o mancebo re- 
solvera velar a noute mn se de^ir, e com a espa- 
da nua ao Ijtdo, tinha-se ^tregado á leitura de um/ 
livro novo, que ém In^eve lhe absorveu a attenção. ) 
Feriu-lhe de repwte o ouvjdo a matuiada das in7 
vestidas no «(Hredor e nos ^^ptosaqtos proxinKis. Apa^ 



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o tàmBuo 0£ umomfííL IjW 

gaado a luz, eempunhaiidí) a e^^ada, agnardoa si- 



A sm p(H<a abriu-se de feto, pouco depois, e 
pareceuJhe aperceber dous vultos na escuridão. 
Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se de- 
bruçava sobre o leito vasio, e o outro, assoprando 
n'um búzio tirava d'elle sons roucos e medonhos, 
caiu ás pranchadas sobre o mui^co do Av^mo, ao 
qual o instrumento escapou dos dedos, e que, ame- 
drontado, principiava a revolver-se pela casa, gritan- 
do como um simples mortal derreado por uma sova. 
O outro phantasma volveu logo em auxilio do agre- 
dido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no 
braço ao que pareceu, deitou-o pela porta fora como 
vm vendaval, em quanto o compnheiro tomava o 
Boeiano caminho, mas de rastos e gemendo. 

D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accen- 
deu a vela do castiçal e a candeia, e examinou atten- 
tamente o campo de batalha. Jaziam no chão um, bu- 
ikk dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, 
um lençol com lagrimas de tinta ^carnada, e uma 
caveira de papeiLo pintada de amarello. 

O mafiçebo sorriu-se. Apelles despegos eram 
o cíwrpq de delicto e ao mesmo tempo documento 
vivo (k conspiração tramada. Algumas gotas de san- 
gue, caidas no^ pavimento de$de metade da casa até 
á porta, provaram-lhe que um dos actores do draxna 
nocturno retirara ferido e assignakda D. Pedro pe- 



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I6ê o tkSrBU.0 BE ÂLMWIIOL 

gOQ no castiçal, esegoindo O rasto de sasigoe 1^ 
redor, notou qne parava no topo, aonde sd existía 
uma pm^de grossa, san nenhuma saida^pàr^te. 
Informado do cpie desejava va^^ear, vdltou atraz, e 
encaminfaou-se ao camaiim de Romão Pkres. Á 
porta viu duas figuras brancas ajodhadas. Dete- 
ve-se um pouco até se afãrmar. A vdha aia e o 
dorido escudeiro, ambos de joelhos, e and)os traifêi- 
dos de medo e de frio, esgotavam um defronte do 
outro todo o vocabulário de rezas e de interjeic^ies 
atribuladas, sem se atreverem a volver aos aposentos. 
D. Pedro, não podendo suster o riso, fallou-lhes, 
animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou 
a visitar a camará de Fr. João. 

O frade ainda jazia na mesma posição. Cons^rava- 
se quasi exânime na ampla cadeira. Vendo entrar 
o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e a es« 
pada nua debaixo do braço, estremeceu, e esbuga- 
lhou os olhos, mas não se moveu. 

D. Pedro aproximou-se da mesa, aceendeu a ou* 
tra vela, e sem proferir palavra examinou cuidado* 
sãmente o aposento. Nenhum indicio! O iirânige 
triumphante não deixara despojos. Terminado o 
exame, poz o castiçal em cima do veladcn*, cdlo* 
cou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para 
junto da cadeira, d'onde o tio, como paralysado, (Ah 
smrava tudo silencioso, disse-Uie: 

— Mas o que foi isto?!.. 



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Fr. loão re^pondea com um so^ifa, e eonrea a 
B^ pela testa ainda inundada de sqor. 

—Estas pistdas di^aradas, ^tas balas no 
diaoL Nãa me éri o qae swcedeii?L..» 

O^ro sn^o mais alto. 

-^ Por oiule entraram eHes?... 

O d(»nmicano, que a vista dasdbrínho ia reani^ 
mando a ponco e ponco, meneou a cabeça com tri^ 
te^a, fez um esforço para levantar meio corpo da ca- 
deira, e sqpontou com o dedo para o cpiadro, cqa 
figura vira minutos antes sdtar-se da nioldura, e en- 
canánhar-se para elle. 

— ^Ah!—- Foi por esta pwta?... observou o so- 
brinho, pegando no castiçãd e correndo a luz por 
todo o quadro de cima abaiio. De repente excla* 
»ou: 01fae?t 

— O que? disse o frade, pondo-se de pé, n^is 
tão abatido e freanulo, como se acaso se levantasse 
convalescente de loi^a enfermidade^ 

— V^iha meu tio, e veja! 

De feito um dos enfeites de talha mais elevado 
moviã^se como um botão debaixo dos dedos do man- 
cebo, e a pesada moldmra, cedendo â pressão, abriu^ 
se lentaH^nte. 
• — Ahl. exclamou ir. João- 

— Aqui tem a portal., e o se^edo de tudo. 

— ^Velhacos I bramiu o dominicsuao irritável, recu* 
perando repentinamente as côi:es, a elasticidade dos 



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110 o GÂSTELLO BE ÀLMOUROL 

membros, e a viveza dos olhos. Mas abaixando a 
vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no 
chão, e uma nuvem torrou-lhe outra vez 6 rosto. 
Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o que succe- 
dera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua 
lucta com os duendes. Fr. João ficou mudo e suspenso 
por momentos, semelhante a* um immenso ponto de 
interrogação. 

— Saiu daqui depois de carregar as armas?-,, 
perguntou D. Pedro. 

— Cinco minutos quando muito. Cheguei ao ca- 
marim de Romão Pires. 

— Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? 
Está certo? 

— Como de te estar vendo. 

— E metteu-lhe uma bala de caUbre? ' 

— Seguramente. 

— Muito bem, quer vêr? 

E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a 
arma, tirando as buxas e a pólvora. Da bala não 
achou noticia. 

— Ah! tratantes!., rugiu o frade, fechando Ofs 
punhos, e rangendo os dentes, plectorico de có- 
lera. 

— Podiam atirar-lhe com três balas aos pés em 
vez de duas! Tinham tido o cuidado... 

— De mas émpahnar?! Sobrinho! Juro que hão 
de pagar-m'o caro!.«. Só atazanados! 



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o CASTELLO DE ALMOUROL lli 

— Dá licença que lhe dê um conselho?,.. 

— Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mos- 
trado valer mais, do que nós todos. 

— Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça 
bulha. 

— Bem I Bem ! Do mams t Qui nesdt dissimulare 
nescit regnare, acudiu fr. João, esfregando as mãos. 
Ahl patifes! O que elles se terão rido á minha 
custai... 

— Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! 
Boas noites meu tio. Socegue, que bem o precisa. 



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A CAMISA DO NOIVADO 



Assi que bem podem dizer deste 
rei D. Pedro, que nom sairom em 
seu tempo certos os ditoos de Só- 
lon, fílosopho, e d'outros, alguns 
dos quaes disserom, que as Leis 
e justiça erom como teias de ara- 
nha nas quaes os mosquitos pe- 
quenos, caindo, são reteudos e 
morrem em ella, e as moscas 
grandes e que som mais rijas, 
jazendo em ellas rompem-as e 
vão-se. 

Fernão Lopes. Chron. de El- 
rey D. Pedro. Cap. IX. 

Houve tempo em que o monte hoje esquecido 
de AJgoço, na ptovincia de Traz-os-Montes, erguia 
a cabeça soberba acima dos outros logares. As mu- 
ralhas de cantaria grossa e as torres quadrangula- 
res do antigo castello, debruçadas sobre um preci- 
pício despenhado, concordavam com a melancolia 

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114 A CAMISA DO NOIVADO 

do sitio e com as sombrias tradições, de que as 
memorias do povo o entristeciam. Dos altos eirados, 
como do cimo de mn ninho de águias, a vista, re- 
lanceando, abraçava toda a campina, mosqueada 
aqui de arvoredos e soutos, rasa de urzes e char- 
necas além, e empolada mais adiante em collinas, 
que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam 
até beijarem o cinto de cabeços alpestres, ultima 
barreira dos horisontes. Ao sopé da montanha, 
aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma 
torrente. Era o Angueira bramindo entalado na 
bronca penedia do leito. Mais ao longe, na coroa 
dos cerros, os pinheiros meneavam as copas verde- 
tristes, e os ciprestes solitários balouçavam ao vento 
as pontas esguias. Por ultimo, ao largo, já quasi 
aonde não enxergavam os olhos, recortavam-se de 
um lado os topes cinzentos da serra de Seabra na 
fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas 
das alturas de Nogueira, toucadas de gelos eternos, 

De tarde, quando começava a escurecer, o ne- 
voeiro, trepando das margens do rio em eólios des- 
eguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e 
envolvia n'uma cortina de vapores os mais elevados 
cumes. Este veu caprichoso, cujas dobras sacudia a 
briza, ora se despregava, deixando entrever con- 
fusamente os vultos, ora condensado cerrava tudo 
em volta do solar. 

AflSrmavam os velhos, que as horas de crepus- 



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À CAMISA DO NOlVAl^O il5 

cnlô e de nebrina eram também as horas dos fei- 
tiços. Uma princeza encantada junto da fonte de 
S. João guardava os thesouros enterrados de certo 
magico. Linda como as estreitas, a maldade do 
encantador condemnara-a a arrastar^se todo o aimo 
em figura de serpente. Só na véspera do festejado 
santo, á meia noite, quando as follias riam mais 
alegres na aldeia, é que o fado mau se que- 
brava até ao alvorecer. Mal repicava a sineta do 
campanário, a moura, banhando-se três vezes na 
ribeira, e depondo sobre uma penha as escamas 
luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella 
a formosura rara de uma belleza admirável. 

Assim a tinham visto alguns mais felizes assen- 
tada debaixo dos velhos e copados ulmeiros á beira 
do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de bran- 
co, desnastrando as tranças com um pente de ouro, 
e cantando aos espiritos do ar com tão maviosa voz, 
que se cortava o coração de a ouvir. 

Accrescentavam ainda, que da aldeia alguém a 
vira já inclinada sobre o espelho da fonte, caindo- 
Ihe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da côr 
da açucena, esbelta, e veloz como a seta, acompa- 
nhava-a. Se áquella hora qualquer lograsse fallar á 
moura antes de tomar a forma de serpente, alcan- 
çaria da bella captiva, que era fada, as primeiras 
três cousas que lhe pedisse ; mas os acasos ditosos 
são raros, e em cem annos pelo menos não havia 



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116 A CAMISA DO NOIVADO 

lembrança de nenhum. A corsa velava, ao menor 
niido batia os pés, e desatava a carreira, e n'um 
instante desapparecia tudo, como sonho, sem outro 
signal mais, do que certo fervor ligeiro nas aguas, 
e uma leve nebrina por entre as arvores. 



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Nos dias d'esta verídica historía governava el-rei 
D. Pedro, chamado o Justiceiro, e três annos depois 
o reino parecia outro. Poderosos e humildes, ricos 
e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer 
punisse, quer premiasse. Os bons sabiam que o 
rei os amava como filhos, os maus tremiam diante 
da isua face, porque o castigo de suas mãos feria 
vingador como a ira de Deus, e rápido como a im- 
paciência dos opprimidos. No seu tempo a lei era 
de um só rosto e a pena não coxeava atraz da 
culpa. Entre o crime e a expiação não se interpu- 
nham annos, promessas, ou favores. Devedor hon- * 



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118 A CAMISA iro NOIVADO 

rado, o príncipe ajustava logo a sua conta a cada um, 
e pagava-a immediatamente. Só aos moradores de 
Algouço, coitados 1 é que ainda não chegara a boa 
sombra do justiceiro, mas assim mesmo sentiam sua 
fé tão viva n'elle, que nas maiores afflicções a voz de 
todos era sempre: tValha-nos aqui el-rei D. Pe- 
dro!» Por fim valefu, e o caso devia ser escripto 
com lettras de ouro pela penna d'aquelle honrado 
e singelo chronista Fernão Lopes, mais poeta do 
que toda uma arcádia, e grande pintor de vultos e 
de cousas. 

. Ainda então se aninhava a povoação de Algouço 
em volta do castello, construido para a defender, e 
da egreja, que estendia sobre as campas a sombra 
misericordiosa dos braços da sua cruz. Por ambas 
as encostas até a coroa da montanha, aonde se er- 
guiam as torres do solar com os engenhos armados 
nos eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam 
as casinhas da aldeia, pendurando-sç, umas cingi- 
das de verdura, oulras negras e arruinadas de ve- 
lhice, estas mudas e desertas a desabar, aquellas 
alvas e remoçadas dissimulando a pobreza com os 
ares quasi festivos 1 1 «Deus nos Uvre de tão mau se- 
nhor I » era o voto dos burguezes de Miranda, compa- 
decidos da escravidão dos moradores de Algouço, e 
ainda não diziam desgraçadamente toda a verdade. 
Ali o suor de sangue regava os banquetes da sala 
de armas e as pompas quasi regias do rico-homem. 



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A CAMISA 1)0 NOIVADO 119 

O pranto da viuva e as lagrimas dos orphãos mo- 
lhavam suas mãos, sempre alçadas contra a miséria 
dos desditosos para destruir o tecto, que lhes abri- 
gava o berço, e revolver ás vezes até o chão sagrado 
do cemitério aonde repousavam seus pães, avós, e 
irmãos. 

O mordomo trazia de cór os sulcos de cada ara- 
do, e o pezo de cada rez. A vontade do amo e a 
cubica dos servos deixavam mendigos á noite os 
que tinham amanhecido remediados! 

D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. 
N'aquella raça o sangue nobre confundia-se com a 
chamma infernal do espirito das trevas desde o casa- 
mento de Diogo Lopes com a Dama-pé-de-Gabra. 
Verdadeira, ou fabulosa, a alliança dos altivos ba- 
rões com os demónios tinha sido fértil em crimes. 
N'uma epocha, em que a lança e a espada cortavam 
as contendas, calando as leis, e calcando os direitos, 
os cavalleiros de Algoço excediam os mais ferozes 
na braveza, e na crueldade ferina. Ver correr pran- 
tos, e derramar sangue, para elles era um deleite. 
Pizar aos pés dos cavallos as searas maduras, ou 
atassalhar nos dentes das matilhas o rebanho, única 
riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro objecto 
das estrondosas caçadas, em que talavam campos e 
vinhas a pretexto de montear lobos e javardos. 
D. Sueiro foi o ultimo d'esta familia impia. Três 
esposas, em seis annos, haviam passado do leito 



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120 A CAMISA DO NOIVADO 

nupcial para o tumulo, sem nenhuma lhe deixar pe- 
nhor de tão mal agourada união. Rosas paUidas, a 
melancoUa d'quelles muros, desbotando-as em flor, 
fanava-as logo? O segredo não transpirou dos lábios 
gelados das victimas; mas sabia-se que os sorrisos 
do amor nunca lhes tinham alegrado a vida. Des- 
ceram ao sepulcro, tristes e silenciosas como exis- 
tiam d'esde o dia em que haviam entrado aquel- 
las sombrias portas. D. Sueiro não soltara íim sus- 
piro I Se uma lagrima congelada n'aquelle coração 
de mármore veio tremer na pálpebra, essa lagrhna 
fundia-se queunada pelo orgulho. O povo accusava-o. 
A nódoa do homicida estampava-se na fronte mal- 
dicta. O crime das três esposas fora a esterilidade. 
O ferro, ou o veneno, rompera o laço conjugal. 
A sepultura quebrara o vinculo apertado no altar 1 
Era calumnía? Era verdade? Quem sabe! Mas as 
noites de Sueiro Lopes podiam espantar os mais ou- 
sados. 



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Tinha fama de grande monteiro o castellão. 
Mál o dia despontava, saltava logo no cavallo, e a 
galope, por sarças e estevaes, por montes e cam- 
pinas, no meio dos caçadores,* entre risos, juras e 
brados, corria até á noite. Uma tarde, na primavera, 
levantou-se-lhe um veado quasi nas terras de um co- 
lono, e a despeito das supplicas do velho, cães e cor- 
seis, salvando valados, e calcando pavêas, arraza- 
ram em minutos o trabalho de mezes. Sobre as vo- 
zerias, latidos, e reUnchos soavam, sem cessar, os 
gritos de cavalleiro: Avantel Sus! Abocai Tocavam 
buzinas, estalavam látegos, o tropel, ennovelado des- 



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123 A GAIHSA DO NOIVADO 

appareceu atraz da pista. Garcia do Mamei, o dono 
do campo, fora o melhor besteiro dos sitios. O msds 
rijo arco dobrava-se, como vime, em suas mãos, e 
a seta da sua aljava atravessara sempre o alvo. 
De avôs a netos esta rubusta e laboriosa raça lan- 
çara raizes profundas no solo, remido pelo seu braço. 
Os mais fundos affectos prendiam-a á terra rota e 
lavrada com o suor do trabalho. Na choupana do 
pequeno casal tinham-lhe nascido viçosas as primei- 
ras esperanças, tinham-lhe alvorecido os castos amo- 
res da esposa e dos filhos. No altar da egreja havi- 
amjidoabençoadas as promessas de mutua ternura; 
e agora debaixo da cúpula frondosa dos álamos, á 
sua porta, o avô, no inverno dos annos,;sentia-se 
renascer nas graças infantis da neta, mimosa e úni- 
ca vergontea, que sobrevivia dos ramos decepados 
pela morte no velho tronco da familia. Garcia amava 
tudo isto com o ardor calado, mas intenso das al- 
mas viris, retemperadas pelo infortúnio. 

A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabeça, 
nem o peso da enxada lhe desfallecera o braço. 
A dor, ferindo-o três vezes no mais vivo do coração, 
a dor mesmo não lhe prostrara o animo. A esposa, 
por tantos annos alegria e conforto de suas fadigas, 
tinha-o deixado a meio caminho da vida para ir es- 
peral-o na mansão de paz. Dois filhos, amparo da 
sua velhice, orgulho da sua ahna, ceifados em flor 
seguiram a mãe, em quanto o ancião desgraçado, 



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A GAiaSA DO NOIVADO 123 

SÓ e de joelhos não via a seu lado no desterro da 
vida, ermo de consolações, senão a infância frágil e 
: graciosa de Silvaninha, duas vezes filha, por que 
duas vezes era o sangue do seu sangue. Inclinado 
sobre três túmulos, e trazendo sempre diante de si 
as sombras da morte, converteu-se-lhe a ternura, 
com que amava a neta, em um extremo louco e 
quasi delirante./ Só esta saudade, só este. amor o 
prendia ainda ao mundo, mas com tal encanto J 
que muitas vezes pedira a Deus que lhe dilatasse os 
dias para não se umr aos que o chamavam do ceu, 
senão depois de a ver mulher e fehz. 

Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos pés dos 
cavallos os fructos de um anno, o sangue do 
velho, remoçado pela ira, pulou nas veias; as fa- 
ces cavadas coraram de súbito, e os olhos des- 
pediram dois relâmpagos. Saindo ao encontro 
do cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas não de 
medo. 

Aquelle campo era o dote da neta, ê só por causa 
d'ella é que supportava o peso aborrecido de seten- 
la annos de fadigas. « Senhor I Senhor! dizia elle cor- 
rendo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim 
caçada cantra um velho e uma donzella! » O ri- 
co homem não respondeu. As matilhas e os ca- 
vallos, precipitando-se, partiam a roda d'elle, en- 
voltos em nuvens de pó, e o afiflicto lavrador, de pé 
e coberto, tmha lançado mão das rédeas do corsel. 



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124 A CAMISA DO NOIVADO 

Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. 
Depois o látego, silvando, cingiu o corpo do velha, 
em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe amea- 
çou o peito com as patas « Fora! rugiu o cavalleiro. 
Eis a paga do conselho ! » Garcia desviou-se quasi 
cego de dôr, e Sueiro, cravando as esporas nos ilha- 
es, voou á rédea larga por cima das hortas e cea- 
ras, bradando: Sus! Abocai» 

O açoute infamante não/cortou o corpo, cortou a ^ 
ahna ao desgraçado. Recuando para a porta, como 
o tigre, e medindo a distancia com as pupilas inflam- 
madas, poz os olhos com anciã no arco e na aljava. 
Um rujido surdo expirava ao mesmo tempo á flor 
dos lábios. A vida do homem orgulhoso e máu es- 
tava á mercê d'aquelle arco. Tomou-o e encurvan- 
do-o ajustou a seta. O que no intimo peito diziam 
o desespero e a cólera era medonho. O rosto não 
o encobria. Ao apontar o tiro a vista ardente elevou- 
se ao ceu. Pedia perdão, ou auxilio? 

De repente baixou-a magoada sobre a casinha 
humilde. Uma voz fresca e melodiosa cantava den- 
tro. Duas lagrimas rebentaram então dos olhos sec- 
cos do velho; os braços descairam. Quiz vencer-se 
e resistir, não pôde. O arco fugiu-lhe das mãos, 
e a bocca murmurou: 

«Fora matal-a também a ellal» Enxugando de- 
pois as pálpebras entregou a Deus^o castigo do 
oppessor. ^^ "^ 



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A CAMISA DO NOIVADO . 125 

Mas a desgraça entrara no seu campo com Suei- 
ro Lopes. 

O mordomo do castello veiu depois, e consmn- 
mou a mina. Desde que fora aviltado, Garcia não 
parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o 
Falecia-lhe a alma e com élla os brios para o tra- 
balho. Os visinhos, acudindo ao choro da neta, vie- 
ram encontal-o morto debaixo de uma oliveira plan- 
tada pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da po- 
bre orphã, confiscada caiu nas mãos de um sobri- 
nho do mordomo, e Silvaninha, sem parentes, e pro- 
tectores, teria morrido de frio e de fome se lhe não 
valesse a caridade dos amigos do besteiro. Um deu- 
Ihe a casa e o sustento; outro vestiu-a; e muitos, ca- 
ptivos desuagentilesa, soccorreram-a, cada qual com 
o que podia. No entanto crescia a donzella emeda- 
de e formosura; mas á medida que os annos cor- 
riam, o rosto pallido e os olhos verdes entristeciam-se. 
Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas faces as lagri- 
mas e não as entendia. E que o pão da esmola, mes- 
mo dado com amor, sempre trava na bocca do in- 
feliz! Ao declinar do dia, olhando para o tecto da 
casinha, de que fora desherdada, apertava-se-lhe 
o coração por modo tal, que tinha pena de viver, e 
que sentia saudades da sepultura, aonde seu avô 
descansava, aonde todos os seus dormiam! 



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IV 



Sete annos eram passados desde a tarde em 
que os moradores de Algoço tinham lançado sobre 
o corpo de Garcia do Mamei os últimos punhados 
de terra. Sueiro Lopes, n'esse intervallo, três vezes 
casado, e outras tantas viuvo, cada vez se havia fei- 
to mais áspero e cruel. 

Mal raiava a manha as buzinas acordavam logo 
as solidões. Assim que a noite se fechava, as fres- 
tas ponteagudas da torre de menagem, illuminando- 
se, reverberavam o clarão das tochas do festim. Os 
gritos, as risadas, as blasphemias da alegria ébria 
espantavam os que vinham perto do castello. Os 



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128 A CAMISA DO NOIVADO 

vicies do senhor avivaram-se com os annos. Os de- 
leites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas 
6 de sangue. O abutre já não empolgava só a vida 
e os bens dosvillãos; abrazadoem ardor impuro ce- 
vava a sensualidade na honra das filhas da aldeia. 
Rindo-se do temor de Deus, arrastava sem piedade 
pelo lodo de amores infames a innocencia das mais 
formosas e a virtude das mais honestas. Um sor- 
riso, um olhar d'elle era como a fascinação do reptil. 
Por onde. passava, as flores mais frescas, e mais pu- 
ras caiam desmaiadas. 

Silvana contava deseseis annos. Mimosa e es- 
belta, o setim das faces realçava a terna pallidez, 
que revestia de tanto enlevo a brandura contempla- 
tiva dos olhos verdes e transparentes, aonde a alma 
retratava os mais suaves affectos. O vivo carmim dos 
lábios abotoando as rosas da bocca, redobrava os 
encantos ao sorriso meigo, tomando irresistivel o 
requebro e a graça virginal da phisionomia namora- 
da. A voz, fresca e melodiosa, insinuando-se no co- 
ração, era o seu maior attrátivo. Recolhida pela cari- 
dade da aldeia, e desvalida, para quem havia de le- 
vantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que 
a fazia palpitar de esperança, quando se mudava no 
cristal da foíite? Vel-a e cubiçal-a foi tudo a mes- 
ma cousa para o rico-homem. EUe, que a um ace- 
no imperioso sujeitava as mais isentas, podia sup- 
por acaso que Silvaninha lhe desse o não, fugin- 



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A CAMISA DO NOIVADO 129 

do a suas caricias? Mas ás primeiras palavras o ru- 
bor do pejo incendiou em chammas o rosto da donzel- 
lâ e nas pupillas de esmeralda fuzilou a ira. Soltando as 
mãos envergonhada e offendida, furtou-se ás garras do 
açor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um jura- 
mento saltou-lhe da bocca por entre sorrisos lividos. 
— Não serás esposa sem primeiro seres amante 1 
Pedirás de joelhos o que hoje engeitas! Sei atalhar 
os rodeios á corsa. Sei aonde o golpe fere seguro 1 

^ Deus do ceu compadeçeb^yosjd Silvana! EUa mal 
o escutou. Tremula e soffocada não suspendeu a 
carreba senão á porta da cabana aonde morava a 
velha Aldonça, conselho e consolação de toda a al- 
deia. As linguas maldizentes afifirmavam, que a ve- 
lha não era decrépita, nem mendiga, mas fada, e que 
sabia ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam 
prodigios do seu poder! Alguns chegaram a asseverar 
até, que ella e a serpente encantada tinham nasci- 
do irmans, e se juntavam em colloquio á meia jaoioh^ 

j[te. Quando a donzella appareceu, Aldonça, sentada 
em um penedo diante da porta, acabava de espiar 
a roca ; viu-a e sorriu-se. Enrolou depois a estriga, 
puxou o fio, e á medida que o fiíso girava, e que 
a linha se enrolava, meneava a cabeça, como se es- 
tivesse vendo, ou ouvindo, a muito longe dos senti- 
dos cousa de seu gosto. 

— Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o 
que vos traz assim assustada O açor cubicou a ro- 

9 



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130 A CAMISA DO NOIVADO 

linha? Havia de serl Estava escripto lá em cima, e 
o que ha de acontecer muita força tem. Gonta-me 
tudo. O que te disse? O que lhe respondeste? * 
Quando Silvana terminou, redarguiu a velha: 
— Louvado Deusl Vem perto a hora e o dia. O des- 
tino pode mais que o homem. A águia real já a es- 
. tou vendo voar. Dentro cm pouco temos grandes no- 
vidades, filhai Apesar de agudas, as garras do açor 
não hão de ferir-te. Vai daqui á fonte .da moura e 
dize que sim a quem lá encontrares. Não te demo- 
res. D'onde se não espera vem o remédio. Has de 
ser feliz 1 

Ditas estas palavras, abysmou-se em tão pro- 
fundo scismar, que parecia morta. Não quiz sa- 
ber mais a donzella. Voou á fonte com a fê viva 
dos quinze annos e da esperança. Ao pé do primei- 
ro álamo parou e tremeu. Não vira a serpente, nem 
a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto 
6 gentil, filho do mais abastado cavalleiro villão das 
cercanias. Porque lhe esmorece a ella de súbito a 
vermelhidão das faces affrontadas da corrida? porque 
lhe bateu o coração no peito tão atropellado? Tel- 
lo Vasques, o melhor besteiro depois da morte de 
Garcia do Marnel, era o noivo que as raparigas das 
cinco aldeias visinhas disputavam com mais inveja. 
Debalde ! A vista d'elle não se baixara para nenhu- 
ma, nem a sua bocca se abrira para dizer, uma pa- 
lavra tema á mais. galante. Silvaninha fora a sua 



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A CAinSÀ DO NOIYADO 131 

primeira e iinica paixão. Combateu-a e calou-a por 
muito tempo, com receio dos pais, mas por fim, não se 
podendo conter, decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhc 
a mão. Ninguém sabia o segredo do mancebo senão 
Aldonça, porque d'essa nada se escondia. E a don- 
zeíla?. . . Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam 
os seus, e no próprio coração, que, alvoroçado, lhe 
dissera pela primeira vez o que era amor. Quando 
parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello 
estava alli. Sem forças para se adiantar ou para re- 
troceder, subiu-lhe ás faces o rubor em ondas, e a 
vista não ousou despregar-se do chão. O tremor con- 
vulso que a agitava fazia-lhe arfar o seio. 



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Tello Vasques não estava menos enleado. Corou 
também, e a vivesa natm^al dos olhos pretos esmo- 
receu meio oíFuscada pela sombra das pestanas, En» 
cobrindo que a esperava, quiz saudar Silvana; mas 
a voz negou-se-lhe, e uma espécie de deslumbramento 
torvou-lhe a vista. A mão suspensa, a cabeça incli-^ 
nada, o gesto cheio de timidez retratavam a vonta- 
de presa do enlevo sem força para dissimular, e ain- 
da menos para combater. Assim ficaram por minutos, 
hnmoveis, calados, contemplando-se, e fallando só 
com o coração. A felicidade era tão grande, que 
não achavam termos que a pintassem. Quem encos- 



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# 



|M A CJJO&A DO NOITADO 

taase a mão ao peito do robusto bestáro, sentindo- 
pulsar agitado, logo conhecia que o amor o fize- 
ra seu. Quem escutasse o palpitar ancioso do seio 
de Silvaninha não precisava perguntar-lhe se tam^ 
bem amava t 

Em redor d^elles tudo era paz e serenidade. Por 
cima o ceu puro recortando-se por entre a cu{$tda 
frondosa das arvores. Ao lado a agua, sussurrando 
pregmçosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se 
nas relvas que aveludavam o chão. Mais longe, a 
pequena levada afundava-se com estrépito pelas 
f^as musgosas dos penhascos debruçados sobre 
o valle. Em baixo, no fim da encosta, uma verdadei- 
ra alcatifa de hortos, de pomares, e de campos viço- 
sos, contrastando com o arvoredo sombrio, que en- 
tristecia ao largo a paisagem. Depois, a perder de 
¥Ísta, a côr árida e melancohca das charnecas desa^ 
tando-se até aos cabeços da serra, cujos cimos o 
sol dourava despedindo-se entre nuvens. Uma bri- 
sa louca, mas amena, doudejáva na campina, rama- 
Ifaando as folhas, brincando com os arbustos, em- 
polando e acamando as ervas dos prados. Os rou- 
xinóes nas montas rompiam em trinados os de- 
ficiosos gorgeios. A cigarra casava a voz estri- 
dula com o coaxar das rãs. As sombras, delga- 
das ainda, começavam a fechar-se sobre o val- 
le, emquanto os raios do dia amorteciam a pouco 
e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino 



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A CAMISA DO NOIYADO MS 

azul do firmamento e o verde fresco das arvores e 
plantas. 

Quando a temm^ mutua os deixou respirai, a 
donzella, volvendo em si primeiro, e desabotoando 
o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de travessa 
ameaça e disse : 

— Vós aqui, Tellol A esta hora, em sitio por 
onde poucos passam 1 Que quereis que digam da 
pobre Silvana, que não tem senão o seu no- 
me?... 

A voz era queixosa, e não irada. O timbre har- 
monioso avivou no peito do mancebo o ardor da pai- 
xão. Depois os olhos sorriam animados de malicia 
tão innocente, que Tello leu n elles mais do que es- 
perança, leu amor. De repente ficou outro. Pegando- 
Ihe na mão, e beijando-a, a voz soltou-se-lhe, e a 
vista, cobrando valor na vista d'ella, tomou-se tão 
eloquente, tão ávida de ternura, que ella baixou ou- 
tra vez as pálpebras. 

— Silvana 1 exclamou arrebatado. Quiz Deus que 
nos amassemos, e que um não podesse viver sem o 
outro. Meus pães consentem. Dás-me o sim? 

O jubilo transformou a phisionomia da donze la. 
Depois o carmin das faces sumiu-se, e as lindas pu- 
pillas, um momento radiosas, molhando-se de lagri- 
mas, lançaram sobre o rosto as sombras da mais 
resignada tristesa. Sem retirar, ou entregar a mão; 
que o mancebo prendia nas suas, a neta de Garcia 



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136 A CAUSA DO NOIVADO 

do Mamei, esquecido o conselho de Aldonça, res 
pondeu singelamente: 

— Tello, não vos darei já o sim ; não quero ar- 
repender-me. O filho de Ayres Vasques, do mais 
abastado morador da terra de Miranda, não deve es- 
colher a sua noiva entre as donzellas mais pobres e 
desvalidas de Algoço. Amo! Porque hei de ne- 
gal-o? Mas pelo muito amor é que receio acceitar. 
O que ha de trazer em dote a orphã sustentada 
pela caridade dos visinhos senão lagrimas e sauda- 
des d'aquelle chão, aonde dorme sem vingança, por- 
que ninguém lh'a deu, ou pode dar, o velho que 
duas vezes foi seu pai, e que por ella mcMreu de 
dôr? Não, Tello! Não pode ser! 

Paliando assim, tremula e consternada, mal re- 
primia o pranto. O mancebo admu*ava-a silencioso. 
As lagrimas desUsando-se, os olhos que a dôr fazia 
irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dis- 
simulada firmesa a magoa intima, por tal modo lhe 
realçavam a formosura, que o besteiro não sabia se 
era anjo, ou fada, a que estava adorando ali capti* 
vodemil áttractivos. Attraindo-a, depois, com Ímpe- 
to, e unindo-a ao peito, elle, o homem forte, o filho 
de uma raça leal e rude, como o século em que vi- 
via, sentiu rebentar o pranto, e não se envergonhou 
de o deixar correr. 

—A tua vontade, Silvana, será a minha! disse 
por fim. Mas por amor te quero, e não é justo que . 



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A CAMISA DO NOIVADO l37 

jKff amor te perca. O que vale dizer a bocca nâo, 
se os olhos, mau pesar teu, estão dizendo sim? Dizes 
que o dote que me trazes é de lagrimas e pobresas? 
Níinca fui mais rico. Estas lagrimas piedosas da fi- 
lha promettem venturas ao marido. E a puresa does- 
se coração é o teu maior thesouro. Hontem não 
podia viver sem ti, hoje morria se te perdesse. Sil- 
Yanal... Não n'o escondas 1 O senhor tentou-te de 
amores, e jurou vingar-se dos despresos?Socegal 
Deus será comnosco. O meu arco não erra. A seta 
vae sempre aonde a mando 1 

Não cedeu ainda a donzella, mas Tello não se 
enganara : o coração desmentia a bocca. Afinal deu 
o shn, cobriu o rosto, e accêsaempejo desappareceu 
como se toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou 
ajustado, que no seguinte dia iria Tello ao solar pe- 
dir licença a Sueu^o Lopes. Os noivos sem ella não 
podiam receber-se na igreja de Algoço, e Silvana 
desejava tanto que seus amores fossem abençoados, 
aonde o tmham sido os de seu pai e seu avô, que o 
besteiro não ousou contrarial-a. Altos juizos de 
Deusl Mal previa o orgulhoso descendente dos se- 
nhores dB Biscaia que por causa dos olhos verdes 
de uma donzella pagaria todas as culpas da $ua 
geração, todos os crimes da sua vida. 



V . 



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VI 



Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a 
tarde um cavalleiro, correndo a rédea larga, subia a 
ladeira torcida por entre os penhascos que findava 
á porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa 
quadrilha de monteiros, de guarda-coz verde e cmtos 
de couro, passou rindo e folgando, em quanto os 
inoços de monte sustiiiham das tréllas as matilhas 
iinpacientes, cujos saltos e latidos formavam con- 
digno acompanhamento aos alaridos dos caçadores. 
No meio do préstito jovial uma azemola conduzia 
atravessado em duas varas o corpo de um javardo, 
^iclima enorme e cerdosa sacrificada depois de atu- 



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110 À cAsmk DO i<m?Âix> 

râdâ fadiga e renhido miohdáe, segando a^sta?âm 
os golpes, com que suas navalhadas presas tinham 
descosido os mais valentes e fugosos cães. 

Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e 
o tropel ruidoso, trotando, recordava as proesas dos 
sabujos mais atrevidos, e resava, entre chufas e ga- 
lhofas, a oração fimebre do pingue eremita, que to- 
dos haviam corrido sem parar desde a madrugada 
até ao pôr do sol. 

D. Sueiro, que se apartara d'elles ao pé da fonte 
da moura, era o único serio e silencioso. Contra 
o seu costume, a trompa de prata pendia muda, 
e nem o ardor da carreira, nem as iras do javali, va- 
rado pelo seuvenabulo, lhe arrancavam os sons fes- 
tivos, que era sempre o primeiro a levantar. Que ma- 
goa, ou que remorso entristecia o senhor de Al- 
goço? Nas trevas, nas horas atormentadas das noi- 
tes sem somno, apparecera-lhe a visão terrível, 
com que na raça de Biscaia a sombra de Diogo Lo- 
pes avisava a cabeça da familia de estar próximo o 
dia dos últimos e tardios arrependimentos? Ao pé 
da fonte apeiou-se, e, com a cabeça entre as mãos, 
alongou a vista até aos montes fronteiros. O olhar 
vago e perdido dizia que o espirito não se achava ali. 
De repente rangeram e estalaram os ramos junto 
d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma figura. Ao 
ruido o rico-homem levou a mão ao punho da es- 
pada, inculcaíndo sobrôsalto sem receio. O medo 



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A. CAMISA. DO NOIVADO 141 

nunca entrara n'âquelle peito inaccessivel â pie- 
dade. 

— Quem és? O que buscas? bradou irado, me- 
dindo com os olhos torvos o robusto e esbelto man- 
cebo, que de arco frouxo na mão, e frechas passa- 
das no cinto, se lhe descobria subitamente. 

Este não se alterou. Vendo perto de si o homem, 
que tantas lagrimas accusavam, assomou-lhe ás fa- 
ces morenas um leve rubor e as pupillas negras fa- 
iscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com 
mais força os copos da espada. 

— Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, 
e a vôs buscava! 

A firmesa do tom e a concisão da resposta desa- 
gradaram ao cavalleiro. Brilharam os olhos mais 
sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe oí beiços. 

— O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao 
senhor de Algoço, fora do seu castello, n'este logar 
deserto? 

A ironia salpicava de escameo as palavras pro- 
nunciadas com desprezo. 

— Venho dizer-vos, redarguiu o besteu-o, áspero 
e frio, que vive em vossas terras a donzella que ha 
de ser minha mulher. 

— Ah! Só isso?! E é bonita e moça a tua noiva? 
Por força a conheço então. Gomo se chama? 

Paliando assim, o tom e os modos de Sueiro es- 
tillavam tal veneno, que as fúrias do ciúme se le- 



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142 A GABnSA DO NOIVADO 

vantaram no peito do mancebo. Conteve-se, porem, 
e retorcpiiu: 

— A mais formosa da aldeia. Ê a Silvana do 
Marnel. 

— A Silvaninha? A pérola de Algoço? Dal-a a 
um javardo de Miranda?! Pões alto o pensamento, 
villão. Muito altol Manjares de senhor não se dão a 
servos. 

Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o 
braço a Tello. A mão procurou a seta mais aguda 
no cinto, e os olhos chammejantes apontaram no peito 
do rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro perce- 
beu, mas disfarçou. Continuando a pungir o man- 
cebo com mofas, prosegniu : 

— Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silva- 
ninha dera eu o melhor cavallo e o melhor arnez, e 
que um beijo d'aquellabocca pagaria o resgate de um 
barão? Cuida o villão que eu havia de enterrar na 
sua posilga a roza dos nossos sitios? 

— Senhor! bradou o besteiro, tremulo de cólera e 
de ciúme. 

— Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o pé 
no estribo e sacudindo o látego no ar. Arreda! ajun- 
tou vendo-o adiantar direito e pallido, com mil amea- 
ças nos olhos e no gesto. Arreda, ou por meu 
bisavô te juro, que tantas noutes dormirás na cister- 
na do meu castello, que de lá te arranquem cego e 
doudo 1 



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A GAiaSÂ DO NOIVADO 143 

— Veremos! articulou o besteiro retesando o ar- 
co. Só Deus sabe aonde vós dormireis bojei 

O cavalleiro ja tinha cravado esporas no corsel, e 
começara a levantar o galope, quando lhe chega- 
ram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as, pa- 
rou o cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, 
sem baixar a vista sobre elle, disse-lhe rindo aflron- 
tosamente: 

— Villaol Não has de ir queixoso, olha bemi No 
dia em que Silvana tecer de fios de ortigas, nascidas 
na sepultura do avô, duas camisas para mim, dou li- 
cença que se chame tua mulher. E uma jóia por um 
ceitil! uma das camisas será o meu brinde de noiva- 
do, a outra desejo-a para me enterrar com ella no 
dia seguinte. Até lá que não vos tome a ver a am- 
bos! 

A esperança acabou de fallecer no peito ao man- 
cebo. Fez-se branco, fugiu-lhe a luz da vista, e sen- 
tiu-se tão prostrado, como se o sangue se lhe esvais- 
se todo. Quiz fallar e correr, mas os pés arraiga- 
vam-se ao chão. A mão inerte não se erguia. A dor 
immensa tinha-lhe quasi suspendido a vida. Quan- 
do volveu a si para olhar em roda, avistou ao longe 
na planicie o vulto do cavalleiro maldito, e pareceu- 
Ihe ouvir estalar ainda as risadas do seu escarneo. 
Teljo elevou então ao ceu a vista toldada de lagri- 
mas e caiu em um scismar profundo. Desceu a nou- 
te sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas 



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144 A CAiaSA DO NOIVADO 

arvores sem elle o sentir; e as primeiras gotas da 
chuva, nuncias da tempestade, orvalharam-lhe a ca- 
beça nua, sem o despertarem da amargura. Ao re- 
bombo dos trovões é que acordou, e que principiou 
a afastar-se com passos vagarosos do sitio, aonde o 
amor cercado de illusões lhe sorrira alegre, e aonde 
deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanças 
da existência. 



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vn 



— o açor encontrará a águia. Sinto-a já voarl 
Não chores, SUvana, serás feliz. Diz-to quem o sabei 
Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar na al- 
java. Esta noite, á meia noite, ide ambos ao cemi- 
tério da igreja. Ajoelhai e rezai sobre a sepultura de 
Garcia. Como as ortigas crescem e estão n'ella viço- 
sas 1 Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas 
e duas, e traz-m'as no regaço á fonte da Moura. 
Véspera de S. João ha de torcer-se o fio. As duas 
camisas não hão de faltar. A semana que vem será 
a do noivado e a do enterro. Ouvis dobrar o sino? 
A águia não tarda. Enxugai os olhos. 

10 



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146 A CAMISA DO NOITABO 

E â velha Aldonça, dizendo isto, ria-se c(m 
aquelle ar que fazia da feiticeira a amiga de todos 
os afflictos. D. Sueiro puzera por condição, que sé 
daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de or- 
tigas da sepultura do avô duas camisas. 

— Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a don- 
zella suspirando. 

— Por que não fugimos nós? acudiu elle a meia 
voz. 

— Por que ninguém foge á sorte I tomou a velha, 
erguendo-se e sustendo a mão alva e breve de Sil- 
vana entre as suas. Não vos demoreis. Á meia noi- 
te, ao romper da lua, todos três na fonte da Moural 

Era já escuro, e as estrellas começavam a scintil- 
lar. Suspirava a viração por entre as folhas das ar- 
vores, que no cemitério cobriam de sombra as se- 
pultas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A 
roza silvestre entrelaçava-se com as verbenas e com 
Qs goivos. Ao lado da egreja, entre rosmaninhos, er- 
guia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um arco 
no topo. Ali repousava de setenta annos de edade e 
de fadigas o avô da donzella. Segundo afirmara Al- 
donça, uma seara de ortigas vestia o chão. Como o 
pranto se corre pelas faces de Silvana ajoelhadal 
Como a oração sobe pura e fervorosa de seus lábios 
ao regaço dos anjos, que vão depor aos pés do Se- 
nhor I Mais afastado, Tello, também de joeHios, ora- 
va com ardor; mas aquelle peito, menos brando, 



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A CAMISA DO NOIVADO 147 

mistura com as preces vozes de vingança. Por fim 
levantou-se a donzella. e beijando a terra aonde o 
pó dos cpie amara se volvera ao pó, principiou a 
cumprir as ordens de Aldonça. A duas e duas foi 
apanhando as ortigas. Quando acabava chispou no 
outeiro mais próximo a labareda da primeira fogueira. 
e soou na voz de bronze do sino o primeiro repique. 
A lua rompia de traz da serra, e o seu clarão branpo 
allumiava toda a campina. Era a hora aprazada. O 
mancebo deu a mão a Silvana. Tinham ambos tan- 
tas cousas dentro d'alma, que nenhum fallou em 
todo o caminho. 

Quando chegaram não viram senão uma serpente, 
fugindo por cima dos penhascos, e uma corsa branca 
pulando por entre as arvores. A velha Aldonça 
appareceu de repente ao pé da fonte, e acenou-lhes. 
Recebendo das mãos da donzella as três regaçadas 
de ortigas, banhou-as outras tantas vezes na agua 
encantada, pronunciando algumas palavras a meia 
voz. Passados minutos tirou-as do tanque reduzi- 
das a feveras finas, como o fio que tece a aranha. 
Três dias decorreram. Em todos elles não cessou de 
girar o fuso da velha. 

No quarto dia dobou-se a linha; no quinto met- 
teram-se as meadas no tear. 

Quando a semana pendia só de poucas horas, 
Sueiro Lopes passou a cavallo pela choupana, 
olhou, e viu Aldonça á porta, cozendo com Silvana 



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148 A CAMISA DO NOIVADO 

uma tela tão branca e transparente, qae deslum- 
brava. 

— Guarde-vos Deusl disse detendo-se. Que es- 
tais cosendo com tanta pressa? 

E o cavalleiro não tirava a vista dos dedos afila- 
dos da donzeUa que voavam sobre a costura. 

— Estamos cumprindo um votol redarguiu a ve- 
lha sem levantar a cabeça. Aquella é a camisa do 
noivado, esta é a camisa do enterro. Ortigas do ce- 
mitério nos deram o fio, e boas fadas nos teceram 
o panno. Em três dias estarão acabadas e em três 
dias veremos também a noiva no altar e o morto no 
caixão. 

Ouvindo-a, orico-homem mudou de côr e largou 
a6 rédeas ao cavallo. A velha, vendo-o correr, ex- 
clamou, meneando a cabeça: 

— Correi Que mais corre o destino! Ao que ha 
de ser ninguém escapai 



f , 



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Vffl 



Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. 
O povo aeotovela-se á saida do estreito portal, e 
mais de um moço airoso, de rosto bronzeado, dis- 
trahe a vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, 
cujos olhos cheios de reticencias recordam os jura- 
mentos da véspera. O ruido dos pés, o borburinho 
e os alaridos das creanças, saltando pelo adro, ani- 
mam de ar festivo a scena popular. Em quanto o 
Reitor, curvo e triste, se encaminha de vagar para 
a sua morada, estendendo a benção pelos aldeãos, 



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150 A CAMISA DO NOITADO 

Silvana, sempre palfída, ampara no braço delicado 
o corpo de Aldonça. Os vUlãos desbarretam-se di- 
ante d'eUas, como diante do pastor; as mulheres 
acodem a saudal-as ; e os rapazes, suspendendo as 
travessuras, tomam-as por intercessoras de suas pe- 
tições. Encostado a uma oliveira antiga, Tello, de 
braços crusados, e com o arco a tiraçollo, não despre^ 
ga a vista namorada da neta de Garcia. 

Mas antes dasduas trilharem o sitio onde ella as está 
esperando, um homem de estatura elevada, semblante 
jovial, e gestos impetuosos, apressando o passo, 
adianta-se, e chega primeiro. E simples o seu tra- 
jo. Guarda-coz de ipre verde desenha o corpo ro- 
busto, e a monteira do mesmo estofo, sem plumas, 
assenta com desgarre fragueiro sobre os cabellos 
pretos, cujos anneis se debruçam sobre o cabeção 
da golla. Era de villão o vestido, mas o garbo e o 
porte inculcavam condição mais nobre. Nas pupillas 
inquietas, e por vezes desvairadas, retrata-se a ín- 
dole ardente, prompta na ira, fácil nos arrebata- 
mentos. 

As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nu- 
vem que tolda a espaços a serenidade da phisiono- 
mia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas rá- 
pidas ao semblante, denunciando saudades intimas 
e incuráveis, avivam as feições de um caracter afeito 
a dominar, de um coração ferido de golpe irrepara-^ 
vel, de uma razão que no combate da^ paixões 



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A CAMISA DO NOIVADO i51 

Dem sençre ha de conservar-se lúcida, resultado de 
passados soffirim^tos. 

Afagando com a mão diráta as compridas bar- 
bas, e concertando com a esquerda o cinto, de que 
pende a adaga e uma trompa, este homem, que não 
pôde contar ainda quarenta annos, e que entrara na 
e^eja sem nenhum dos fieis se lembrar de o ter 
visto nunca, começou â saida a Callar com uns e 
com outros, fazendo perguntas aos mais velhos. 
Rompendo depcHs por. entre o povo veiu collocar-se 
no sitio, aonde o descobrimos diante de Aldonça « 
Silvana, tão próximo de Tello que este não perdeu 
palavra do que disse. Sem saber porque, o besteiro, 
de ordinário cioso e assomado, em logar de se affi^on* 
tar, e^imou quasi a ousadia do monteiro. Parecia 
que um presentimento occulto lhe insinuava, que 
se decidia n^este momento a sua sorte. Era tão 
grande n*elle a tranquillidade de animo, como se a 
noiva adorada estivesse debaixo da protecção d'a- 
quelle que duas vezes chamara pae. A velha Aldon- 
ça, apenas divisara o hospede, exclamou como re- 
juvenescida de repente: 

— Filhai Não t*o aflfirmei? A águia real saiu do 
ninho. A hora vem perto. Ouve o que te disser, 
obedece ao que te mandar, succeda o que succe- 
der. Muita fé em Deus e na justiça de Elrei D. Pe- 
dro. 

— Não é a fé que me falta, redarguiu melancho- 



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151 A CAlilSA DO NOITADO 

lik^ a donzeUa, é a esperança, mãe!... Elrei está 
longe e tão alto, que não podem vencer de c^rto 
metade do caminho as queixas da orpbã. 

— Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, 
adkntando-se, e admirando a formosura de Silvâna. 
Pegando-lhe na mão, ajuntou: 

— El-rei D. Pedro, filha, vê e ouve de longe. Con- 
ta-me tuas magoas. 

Paliando assim, o tom da voz era brando. Tello, 
que o contemplava, sentiu renascer a esperança, e 
insensivelmente socegou do maior cuidado. Ora 
pallida, ora corada, a neta de Garcia narrava no 
emtanto a morte dolorosa do avó, as lastimas da 
sua infância, e os amores infames que a persegui- 
am. As palavras pintavam a sua alma. Mais compa- 
decida, do que vingativa, procurava atenuar as cru- 
eldades do senhor. Quando terminou, o desconhe- 
cido, sorrindo-se, e soltando-lhe a mão, disse: 

— Descansai! Está perto El-rei D. Pedro. Ê co- 
mo se vos ouvisse. Mandai a Sueiro Lopes a camisa 
da mortalha, não a pediu de balde! Se o cavalleiro 
fôr desleal, ou se vos quizer th*ar por força, envi- 
ai-me este signal. Deus e El-rei serão comvosco! 

Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata 
e virando-se para Tello, accrescentava: 

— E o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes 
bem?!... Não coreis, Silvana! Se o besteiro fôr o que 
mostra em pouco ha. de fallar-se d'-elle em Miranda. 



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A CAMISA DO NOITADO 153 

Adeus! Não vos esqueça!... Ao primeiro perigo, um 
recado e o signal. O mais fica para mim. 

Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvo- 
res, e Tello estava aos pés da noiva, que Aldonça 
animava, annunciando-lhe próximo o termo de seus 
pezares. 



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K 



Quando TeUo, ao cair da tarde do outro dia, tre- 
pava a pé a ladeira do castallo de Algoço, vinha des* 
cendo o mordomo, seguido dos homens d'armas es- 
colhidos. O mordomo era o cego executor da von- 
tade de Sueiro Lopes; alma negra do senhor, aonde 
alcançara com o braço deixara sempre vestigios do- 
lorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o 
aborrecia, o viUico (era o seu titulo n*aquelle tempo) 
não pôde conter o sorriso, rosnando por entre den- 
tes: quantos vão que não voltarão 1 O noivo de Sil- 
vana desprezou o riso, e contmuou o caminho; mas 
á porta de^ediram-o asperamente, responctende 



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156 A CAMISA DO NOIVADO 

que Sua Mercê repousava, e que ninguém o des- 
pertaria para dar audiência a um villão. A principio 
Tello pôde sopear a ira, mas a pouco e pouco a al- 
tercação irritou-o, e levantou a voz. Sueiro Lopes 
assomou de repente á porta. Inteirado do motivo 
da disputa, virou-se para o besteiro, e perguntou: 

— A que vens aqui? 

— Trazer o que mandastes e pedir o cumpri- 
mento da promessa 1 redarguiu elle firiamente. 

O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que 
não soube vencer, sacudiu-lhe os membros. Lem- 
brou-se da tela alvissimae transparente, que vira na 
choupana de Aldonça, e tremeu pela primeh-a vez 
da sua vida. Depressa se recobrou e medindo o man- 
cebo com indizivel escarneo, replicou: 

— Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os 
fios das ortigas da sepultura de Garcia, uma para o 
teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra 
de cavalleíro não quebra! Se cumpriste, não hei de 
fahar. As camisas?... 

— Eil-asl acudiu o besteiro. Ortigas deram o. fio 
e fadas teceram o panno. 

Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A 
maravilhosa tela, que o noivo de Silvana desdobrou 
diante de seus olhos, na finura admirável bem mos- 
trava não ser obra de mãos humanas. Pegando na 
mortalha D. Sueiro tremia. Sobre o peito, em lettras 
Côr de sangne, viu as iriiciaes do seu nome e pondo 



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A CAMISA DO NOIVADO 157 

O estofo contra â luz, retrataram-se-lhe as feições das 
três esposas que tinham passado ao tumulo do seu 
leito. 

— Bem! exclamou. Silvana é tua se a achares. 
Quanto á mortalha.... Veremos esta noite quem a 
veste I 

Não esperou por mais o besteiro, e partiu, apres- 
sando o passo, caminho da choupana de Aldonça. 
Um presentimento vago advertia-o de perigo mcer- 
to. A tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a bôa 
nova, que levava, devia alegral-o. A noite fechou-se 
escura. O tempo tinha mudado. Rugindo no pinhal 
o vento arrancava por entre as ramas das arvores 
gemidos lúgubres. No céu apagavam-se as estrellas 
umas apóz outras debaixo do pesado toldo de nuvens, 
e a lua encobria- se de todo por cima do ultimo ou- 
teiro. Sem saber porque, sentiu-seTello desalentado. 
Elle, o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro 
mais destro dos contornos, deu por si mais de uma 
vez arrastando os passos e tremendo. Quando che- 
gou á choupana, achou a casa erma e a porta arrom- 
bada, e acabou de crer que os presságios não men- 
tem. Bastava olhar para dentro para adivinhar uma 
scena violenta. A lâmpada ardia ainda junto do lar, 
e luz mortiça deixava ver os escanhos partidos, os 
vasos de barro pisados, as arcas espedaçadas. O po- 
bre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em 
um feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar 



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158 A CAMISA DO NOIVADO 

as ideias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrado as 
forças. Nem o animo, nem a razão se prestavam a 
ajudal-o. 

Fora rapto? Fora vingança mais atroz? A mudez 
da cabana não respondia! Saharam-lhe então as la- 
grimas, e a dôr foi tão penetrante, que a não se en- 
costar caíra desfallecido. Occorreram-lhe as palavras 
de Sueiro Lopes, e percebeu-as tarde. Silvana tinha 
sido roubada pelos servos do Castello, e áquella 
hora entrava talvez as portas do Alcácer, que para 
ella eram as portas do sepulchro. É tua se a acha- 
res t dissera o roubador. A quem iria Tello pedir 
justiça? Luctando com a agonia sentiu que ia en- 
louquecer. Mas, louco, o que restava á donzella se- 
não a morte depois da infâmia? No auge da deses- 
peração, erguendo as mãos, bradou atribulado:» 
Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! 
Não embainheis a espada da justiça!» 

No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mão 
de uma mulher no hombro. Olhou. Viu Aldonça. 
Um signal imperioso atalhou em seus lábios o grito 
* que iafti soltar. Guiando-o calada, a protectora de 
seus amores chegou a um logar deserto, e apontan- 
do para um cavallo ajaezado, preso ao tronco de 
uma arvore, disse-lhe rapidamente: 

— Monta! 

O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a 
trompa de prata, a velha ajuntou: 



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A CAMISA DO NOIVADO 159 

— O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e 
leva roubada a tua noiva. Corre, que por tua felici- 
dade corres, e não pares senão na villa de Miran- 
da. Busca os Paços do conde e apeia-te. Se te 
perguntarem quem és, dize que procuras o senhor. 
Já o viste. E o monteiro d'esta manhã. Dá-lhe a 
trompa, conta-lhe o succedido, e faze o que te man- 
dar. Antes de sol nado estaremos todos juntos ou- 
tra vez. As duas camisas terão cumprido o seu 
fado. 

O mancebo, atónito, viu-a desapparecer, e largan- 
do as rédeas, partiu direito á villa. 



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Ge 



i 



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V 

-ti. 



Como o Douro vae fundo e impetuoso I Como se 
arremessa irado contra os penedos do seu leito ! Que 
trovões rebramam as aguas despenhadas em casca- 
tas contra as penhas, que lhe opprimem a fúria da 
corrente ! Como a noute se cobre de luto (|uasi de 
repente de minuto para minuto I Aos bramidos do 
vento responde o estampido longinquo da tempesta- 
de. Os relâmpagos fuzilam sobre as eminências. 

Lá em cima, nos penhascos fragosos, que villa 
é aquella, cujas torres negras estrellam vivas luzes 
pelas frestas ponteagudas? Seguindo a margem do 
ii 



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102 A GAiaSA DO NOIVADO 

rio, Tello Ya^ques não sente fadiga; o brioso ces- 
sei devora a distancia. Batia a hora de se alçar^^a 
as levadiças, quando o mancebo atravessa pontes 
e estradas, enfia ruas e villas, e pára no terreiro, de- 
fronte dos Paços do conde e da torre de menagem. 
Apeia-se, e sobe os degraus a dois e dois até ao 
portal da primeira sala. Os guardas intentam detel-o; 
mas sem voltar a cabeça, e continuando, respon- 
de: busco o senhor! Ninguém o suspende. De cot- 
redor em corredor, de aposento em aposento chega 
á sala de armas. Entre os cavalleiros, que passeiam, 
divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guar- 
da-coz ainda. 

Grossas tochas em anneis de ferro illuminam a 
vasta quadra. Corpos de armas brunidas, achas, mon- 
tantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos 
ornatos enfeitam as columnas, cujos capiteis lavra- 
dos sustentam os fechos da abobada. O monteiro, 
apercebendç Tello, encaminhou-se para elle. O man- 
cebo vinha tão soffocado, que pôde dobrar apenas 
o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi preciso que 
dle sorrisse para o besteiro narrar o successo, que 
o trazia áquella hora. Conduindo, o moço ergueu 
as mãos, e com a vista inflammada bradou : 

— Levai-me aos pés de El-rei D. Pedro. Dizem 
que não conhece grandes, nem pequenos. A don- 
zella, que roubaram, é pura e santa ixmo a mais 
pura« no|)re de vossas filhas. Não deixeiasem cas- 



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A CAMISA DO NOIVADO 18 

tigo O rico-homem por ella ter nascido no berço de 
um viMol 

Á medida que o besteiro fallava, a phisionomia 
do desconhecido mudava de aspecto. Os olhos pre- 
tos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e 
jovial, empaUidecia, torvo de severidade. Arqueja- 
va-lhe o peito. O gesto infundia medo até nos que 
se achavam distantes. Quando Tello poz termo a 
suas queixas, e levantou a vista, recuou assus- 
tado. A expressão dos olhos do seu protector era 
terrivel. Ensanguentados e delirantes mais se assi- 
milhavam ás pupiUas encandeadas do tigre, do que 
a olhar humano. A voz cheia, mas presa, gague- 
jando, fallava tão convulsa, que pouco se entendia. 
Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes 
brados : 

— Lourenço Gonsalves! Acudi! Um rico homem 
íiirtou a mais linda de minhas filhas! 

O brado, e a immensa cólera, revelaram tudo 
ao mancebo. Lourenço Gonsalves era o corregedw 
da corte. Ninguém ousaria chamal-o assim senão 
el-rei. Tello prostrou-se cheio de esperança. 

— Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo 
enfi*eado á porta! A minha capellina de aço 1 Gon- 
salo Vasques de Góes, escrivão da Puridade! Char 
mae os desembargadores, relatae-lhes o feito, e la- 
vrae a sentença. Por akna de Ignez de Castro !... 
Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de 



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164 A CAMISA BO NOIVADA) 

nase^ o sd haverá um criminoso de menos no mea 
reino, e nmis uma justiça de minhas mãos no hvro 
de soas chronicas! 

Paliando assim enlaçava a capellina, calça^ra, as 
luvas de gamo, e com o açoute cingido, desptendia 
a acha de armas mais pesada. 

O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os ca* 
vaHeiros montavam, e uns apoz outros galoparam 
para o alcançar. El-rei ia deixando atraz do cavalte 
o próprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-sé 
pelas terras de Algoço. Por ema d'esta vertiginosa 
carreira a chuva, cahia em torrentes. A procdk 
abria os céus em clarões lividos, desarraigando as 
arvores annosas. Quando D. Pedro assomava diante 
da porta do castello, um vulto surgiu, que tonK)u- 
lhe as rédeas, convidando-o a apeiar-se. De um 
salto estava em terra e levantando a cabeça via as 
frestas da torre illuminadas. O vulto travou-lhe àú 
braço, e disse: 

— Éah! 

— Vamos I redarguiu o príncipe, e seguiu-o sem 
desconfiança. 

Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu á chave 
6 ao impulso. 

. —Ide agora e Deus seja comvosco ! disse a mes- 
ma voz. 

Ouvindo vozes e risadas no andar su^rior, o 
amante de Igi^z de Castro subiu. No topo da es- 



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A CAMISA BO^ mifAD6 lil 

fiftéa de caracol, a sceim (^ se Ibe represeirtott 
excitoa-lhe ainda mais a cólera. Perdma o terror 
salutar do nome Jasticeiro se perdoasse aqnelle 
crime* 

Era e^açoso o ^^osento. Um lan^adario ai-* 
Imniava parte d'elle;^ o resto mergulbava-ae em 
lâeia escuridão. No centiro da sala, em mn leito, 
eom as mãos ligadas, jazia Silyaninha. Dnas volt» 
de lenço sobre a bocea até os ais lhe suflFocavam I 
Só os dhos, os lindos olhos, banhados de lagrimas 
pediam a Deus a morte, remédio extremo da infa-* 
mia. Sueiro Lopes, defronte, sorfia-se medindo ocm 
a vista a queda lenta da areia d'uma ampulheta. A 
seu lado o vfflico silencioso corria os dados sobre 
a mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida c(Mn as 
ortigas do tumulo, estava nas mãos dò cavalleiro, e 
suas palavras, irónicas como punhaes, atravessavam 
o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos 
senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o 
furor dos zelos. 

— Porque choras, Silvana? Dera hontem o me- 
lhor arnez e o melhor cavallopor um sorrir de teus 
olhos. Pedi-te amor e respondeste não. A tua prenda 
foi esta mortalha ! Que te acudam agora as fadas, 
que a teceram, e os anjos pwque ch^iavas ! Brada 
pelo besteiro viUão, que preferiste ao rico-hcmem ! 
Grita por el-rei D. Pedro 1 Por forte que seja o seu 
lH*aço as portas chapeadas d'este castello ainda são 



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IM A CAlfitA BO NWFADO 

oiais fortes^ Em esta areia, que está por instai^ 
(»hÍQdo toda^.. 

Faltou^lhe a voz. A mio erguida do villico dá- 
xou também roW o ultimo dado* Ao limiar estava 
el-rei D. Pedro, e nos dhos d'elle brilhava um cia- 
râo terrívd. A pesada acha reluzia em ôuas nSos. 

— Traidor 1 bradou o prindpe. Mentes 1 O braço 
de D. Pedro quebra e rompe todas as portas. Vais 
vert... Villãot ajuntou fallando ao villico. Solta as 
o^s e a boca a essa donzella. Ninguém se moval 
Sueiro Lopes, conta bem os grãos de areia da tua 
ampulheta. É o tempo que te dou. \ús comparecer 
na presença de Deusl 

O orgulho indómito do cavalleiro não cedeu. Em- 
punhando a adaga, e posto que pàUido, sempre 
firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redar- 
guiu: 

— Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo 
de Pêro Coelho e de Álvaro Gonsalves? O rei car- 
rasco, falso á sua ahna e á alma de seu pae? Ima- 
S^nas que farei como os outros cavalleiros? Estou 
no meu sdar, e a quem entra de noite e á má fé 
chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os laços da ca- 
ptiva. No aJto e no baixo, irado e pagado, não en- 
trego o castello senão a Deus. A mim, homens d'ar- 
masl 

— Deus é justo! damou el-rá, cuja fúria não 
conhecia limites. O matador de três mulheres levan- 



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A CAMISA BO NaWABa l&J 

t5b« c<Hitra o seu rek O perseguidor cruel de (kn- 
zellas nega-me o preito e menagem. Bem ! Morre- 
rás e(H&o vUlão ás mãos dos teus ¥Íllãos. Não man- 
dio em tal sangue o ferro da minha acha. Villãos! 
bradou imperioso aos servos do senhor que tinham 
a^idido. Sou D. Pedro 1 Sou o rei! Esse que ahi 
está, rebelífe e traidor, prendei-m'o em quanto os 
meus Dão chegam t 

A presença e a voz do filho de Affonso IV infun- 
diam terror. Os hcnnens d'ârmas temiam, mas não 
amavam Sueh-o Lopes. A ordem foi cumprida. De- 
pois de curta e desesperada resistência, o cavallei- 
ro ficou á mercê de el-rei. 

— Pâssae um laço na cadáa do lampadário, pon- 
de um escanho para elle subir, e cingi-lhe o nó na^ 
gsrganta ! proseguiu o soberano indignado. 

— Sou rico-homem por foro de Hesp anha. A, 
afronta da morte vil, cairá sobre vós e sobre todos 
os filhos d'algo. Pedir-te-hão contas d'ella, verdugo! 
gritou o cavalleiro estorcendo-se. 

— A Deus as darei, e a mais ninguém! O des- 
leal que violenta donzdlas não é cavalleiro. Quebro- 
te a e^ada e o foro com o meu sceptro. 

Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do 
escanho, e o villico enrolava-lhe o laço. Gommovida 
e tremula, Silvana lançou-se supplicarite aos pés do 
rei. Debalde! D. Pedre, desviando-se, perguntou ao 



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168 A CAMISA DO miYADO 

— Pedes perdão a Deus e ao teu rei? 
—Não! 

O pé do príncipe tombou o escanho e a morte 
cortou as ultimas palavras do cavalleiro. 



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XI 



A tropeada de muitos cavallos, soando a par do 
alarido e vozes do castello, aimunciou á aldeia alvo- 
roçada a vinda do monarcha. Tello Vasques appa- 
recia á porta quando Sueiro Lopes expirava. 

— Besteiro! Por teus olhos vês que me não cha- 
mam em vão o Justiceiro. Corrias como noivo e co- 
mo esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A jus- 
tiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor! 

Horas depois, a camisa do enterro servia de mor- 
talha a Sueiro na capella, e os noivos recebiam a 
benção nupcial, tendo el-rei D. Pedro por seu pa- 
drinho. 



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170 A CAMISA DO miYADO 

Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas 
o que não esqueceu nunca foi a justiça que fizera 
em Algoço a severidade do monarcha. 

O castello devolveu-se á coroa, e parece que fo- 
ra doado depois ao primogénito de Tello e de Silva- 
na. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade ou 
fabula, não sei. El-rei D. Pedro era tão capaz de 
fazer cavalleiro um villão, como de justiçar como 
villão um cavalleiro. 



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ULTIMA CORRIDA DE TOllOS EH SALVATERRA 



O SeiAor D. José, primeiro do nome, era em 
Salvaterra um rei em férias. A verdade é que os 
maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majesta- 
de em Lisboa estava sempre ao tomo e o marquez 
de Pombal no throno. O proloquio fundava-se na 
habilidade mechanica do monarcha come torneiro, e 
no caracter dominador do marquez como ministro. 

Vecejavam os campos em plena primavera. A 
amendoeira cobria-se de flores, os bosques enfolha- 
Tam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e a 
brisa doudejava indiscreta arregaçando o lenço á 
donzella que passava, ou roubando um beijo á rosa 



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172 ULTIMA. GORRH>A BK TOUROS E» SALVATERRA 

perfumada. Tudo eram al^as e cânticos... os rou- 
xinoes nas montas, o coração nos amores, e a na- 
toresa nos sorrisos ao sol esplendido que a dou- 
rava. 

Uma tourada real chamara a corte a Salvaterra. 
Os fidalgos respiravam n'estas occasiões menos op- 
primidos. Não os assombrava tão de perto a pri- 
vaaça do ministro. Os touros eram bravos, os ca- 
valleiros destros, o amphiteatro pomposo, e o corte- 
jo das damas adorável. O prazer ria na bocca de 
todos. Por cumuk) de venturas o marquez de Poti- 
bal ficara em Lisboa, retido pelo conflicto com o 
embaixador de Hespanha. 

Contava-se em segredo nos recantos do palácio 
o dialogo travado enlre o enviado castelhano e o se- 
cretario de estado portuguez, louvando-o uns em 
alta voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem 
o elogio, crucificando-o outros sem piedade, para 
saciarem os ódios. As devotas e os fidalgos purita- 
nos eram pelo hespanhol, e pediam a Deus que os 
rebates da guerra próxima despenhassem o plebeu 
nobilitado. Os magistrados e os homens de capa e 
volta, defendiam o marquez e respondiam c(Mn meios 
sorrisos ás fugosas jacidatòrias dos zelosos do thro- 
no e do altar. O marquez de Pombal tinha-se ne- 
gado com firmesa ás concessões exigidas imperiosa* 
mente pelo governo castelhano. 

— Muito bem, atalhou o embaixador, um exer- 



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ULIWA COmODA BC TOUROS EM SALTA¥£RRA 173 

eho de sessenta, mil homeDS entrará em Pc»rtagal e 
fará... 

— O qaê? p^i^imitara o m^qnez s(HTm(io-se 
com a tremenda luneta assestada e no tom mais in- 
(Mferente. 

— Fará entender a rasão e a justiça de el-rei, 
meu amo, a Sua Magestade e a vossa excellencial 
redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppon- 
do o mink^ fulminado. 

Sebastião José de Carvalho franziu as sobrance- 
lhas, carregou a viseira, e cravando a vista e a lu- 
neta no diplomata, retorquiu-lhe friamente : 

— Sessenta mil homens muita gente é para casa 
tão pequena, mas, querendo Deus, el-rei, meu amo 
e meu senhor, sempre hade achar aonde possa hos- 
pedal-a. Mais pequena era Aljubairota e lá coube- 
ram os que D. João de GasteHa trouxe. Vossa ex- 
cellencia pode responder isto ao seu governo. 

E, levantando-se para despedir o embaixador, 
ôccrescentou: 

— Bem sabe vossa excellenda que pôde tanto 
cada um em sua casa, que mesmo depois de morto 
slk) precisos quatro homens para o tirarem 1 

O embaixador saiu jurando por Dios y la Virgm 
Santàima e o marquez prepcU*ou-se para a guerra. 
O caso é como dizia o nosso Zeferino na Sobrinha 
do Marquez, que Sebastião José de Carvalho í(À 
um grande ministro e que íidz nmito pela nação. 



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174 ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 

Hoje ha menos quem responda assim á lettra ás 
ameaças dos estrangeiros. Berra-se muito, dorme-se 
a somno solto ao som dos hymnos patrióticos, e de- 
pois salva o castello de madrugada e está salva a 
pátria! 

O marquez de Pombal presava as artes e prote- 
gia e animava as classes medias. Esse pouco, que o 
reino progrediu deveu-se a elle. Se a industria 
nunca acabou de sair da infância a culpa quasi 
toda foi dos maus governos que succederam ao seu, 
e também do povo que não quiz trabalhar deveras... 
Mas vamos aos touros reaes. D'esses é que o minis- 
tro não gostava nada. Queria-os ao arado e não á 
farpa, e parecia-lhe melhor, que os toureadores, 
sendo fidalgos, servissem o Estado com a penna ou 
com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrstssem, 
tecessem e ganhassem honradamente a vida, enri- 
quecendo-se a si e á nação. 

Mas el-rei D. José, cedendo em tudo ao mar- 
quez, quanto aos toiros não admittia reflexões. 
N'isto era rei a valer e Bragança legitimo. Os fidal- 
gos sabiam-o e por isso disfructavam doces praze- 
res — a satisfação do gosto nacional, e a contradic- 
ção da vontade do ministro. Desatendel-a sem pe- 
rigo e pela mão do soberano era para elles um de- 
leite e um triumpho. 

N^estas funcções não vigorava a severidade das 
ultimas pragmáticas. Outro motivo de jubilo. Qnm 



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m^TIVULGOmpiMl B£ TOUfiOS EUSALYAISRSA 17i5 

qnena podia arroinar-se em luxuosos vestidos, en- 
fótes e toucados. As bordaduras e os recamos de 
oiro, os veludos e sedas de fora, talhados á fran- 
ceza, resplandeciam constellados de pérolas e dia- 
mantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais 
vistosas cores desenrokvam-se os anneis ondeados 
das empoadas cabelleiras. As damas ostentavam as 
graças de seus donaires e tufados, e emoldurando 
o beUo oval dos rostos nos penteados caprichosos 
soniam-se para os gentis campeadores, e seus olhos 
cheios de luz e de promessas esthnulavam até os 
tímidos. 

Correram-se as cortinas da tribuna real. Rom- 
pem as musicas. Chegou el-rei, e logo depois en- 
tra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se on- 
dear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça 
resoam brava alegria as trombetas, as charamellas 
e os timbales. Apparecem os cavalleiros, fidalgos 
distinctos todos, coin o conto das lanças nos estri- 
bos e os brazões bordados no veludo das gualdra- 
pas dos cavallos. As plumas dos chapéus debru- 
çam-se.em matisados cocares, e as espadas em 
bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os ca- 
pinhas e forcados vestem com garbo á castelhana 
antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o 
entiiusia^no. 

O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem 
dava mais na vista. O seu trajo, cortado á moda da 



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1 76 TSLimx G(mimA jm toubos em SALTATSimA 

eôrte de Luiz XV, de vdudo preto, fazia reatar a 
elegância do corpo. Na golla da capa e no corpete 
sobresaiam as finas rendas da gravata e dos pu- 
nhos. Nos joelhos as ligas bordadas deixavam es- 
capar com artificio os tufos de cambraeta alvíssima. 
O conde não excedia a estatura ordinária, mas es- 
belto e proporcionado, todos os seus movimentos 
eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de 
mais, porém animadas de grande expressão, e o 
fulgor das pupillas negras fuzilava tãe vivo e por 
vezes tão recobrado, que se tornava irresistivel. Fi- 
lho do marquez de Marialva, e discipulo querido 
de seu pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e tal- 
vez da Europa, a cavallo, a nobreza e a naturali- 
dade do seu porte enlevavam os olhos. Elle e o 
corsel, como que ajustados em uma só peça, reali- 
savam a imagem do centauro antigo. 
. A bizarria com que percorreu a praça, domando 
sem esforço. o fogoso corsel, arrancou prolongados 
e repetidos applausos. Na terceira volta, obrigando 
o cavallo quasi a ajoeihar-se diante de um cama- 
rote, fez que uma dama escondesse torvada na 
lenço as rosas vivissimas do rosto, que de certo 
descobririam o meUndroso segredo da sua alma, se em 
momentos rápidos como o faiscar do relâmpago po- 
des3e alguém adivinhar o que só dois sabiam. 

El-rei, quando o mancebo o comprmientou pela 
ultima vez, sorriu-se, e disse voltando-se: 



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ULTITA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 177 

— Por que virá o conde quasi de luto á festa? 

Principiou o combate. 

Não é propósito nosso descrevermos uma corrida 
de touros. Todos teem assistido a ellas e sabem de 
memoria o que o espectáculo offerece de notável 
Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que 
os touros se corriam desembolados, á hespanhola. 
Nada diminuia, portanto, as probabilidades do pe- 
rigo e a poesia da lucta. 

Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo 
a porta do curro, e um touro preto investiu com a 
praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas com- 
pridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e 
nervosas, indicio de grande ligeireza, e movimentos 
rápidos e bruscos, signal de força prodigiosa. Ape- 
nas tocara o centro da praça, estacou como des- 
lumbrado, sacudiu a fronte e escarvando a terra 
impaciente, soltou um mugido feroz no meio do si- 
lencio, que succedera ás palmas e gritos dos espe- 
ctadores. Dentro em pouco os capinhas, salvando a 
pulos as trincheiras, fugiam á velocidade espantosa 
do animal, e dois, ou três cavallos expirantes de- 
nunciavam a sua fúria. 

Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra 
elle. Fez-se uma pausa. O touro pisava a arena a- 
meaçador e parecia desafiar em vão um contendor. 
De repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella 
provocar o Ímpeto da fera e a hastea flexivel do ro- 

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178 ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 

jão ranger e estalar, embebendo o ferro no pescoço 
musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma accla- 
mação immensa do amphiteatro inteiro, e as vozes 
triumphaes das trombetas e charamellas encerraram 
esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo pas- 
sou a galope por baixo do camarote, diante do qual 
pouco antes fizera ajoelhar o cavallo, a mão alva e 
breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o con- 
de, curvando-se com donaire sobre os arções, apa- 
nhou a flor do chão sem afrouxar a carreira, levou-a 
aos lábios, e metteu-a no peito. Investindo depois 
com o touro, tomado immovel com a raiva concen- 
trada, rodeou-o estreitando em volta d'elle os circu- 
los até chegar quasi a pôr-lhe a mão na anca. 

O mancebo despresava o perigo e pago até da 
morte pelos sorrisos, que seus olhos furtavam de 
longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro com 
a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com 
fúria cega e irresistivel. O cavallo baqueou trespas- 
sado e o cavalleiro, ferido na perna, não pôde levan- 
tar-se. Voltando sobre elle o boi enraivecido arre- 
messou-o aos ares, esperou-lhe a queda nas armas, 
e não se arredou senão quando, assentando-lhe as 
patas sobre o peito, conheceu que o seu inimigo era 
um cadáver. 

Este doloroso lance occorreu com a velocidade do 
raio. Estava ja consummada a tragedia e não havia 
expirado ainda o echo dos últimos aplausos. 



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ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVAVERRA 1 79 

De repente um silencio em que se conglobavam 
milhares de agonias, emudeceu o circo. Rei, vassal- 
los e damas, meio corpo fora dos camarões, fitavam 
a praça sem respirar e erguiam logo depois a vista 
ao ceu como para seguir a alma, que para lá voava 
envolta em sangue. 

Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a 
vida antes de tocar o chão, um gemido agudo, com- 
posto de soluços e choro, caiu sobre o cadáver com 
uma lagi'ima de fogo. Uma dama desmaiada nos 
braços de outras senhoras soltara aquelle grito es- 
tridente, derradeiro ai do coração ao rebentar no 
peito. 

El-rei D. José, com as mãos no rosto, parecia pe- 
trificado. 

A corte d'esta vez acompanhava-o smceramente 
na sua dôr. 

Mas o drama ainda não tinha concluido. Quem 
sabe?l O terror e a piedade iam cortar de novas 
magoas o peito a todos. 

O marquezr de Marialva assistira a tudo do seu 
logar. Revendo-se na gentileza do filho, seus olhos 
seguiam-lhe os movimentos brilhando radiosos a 
cada sorte feliz. Logo que entrou o touro preto car- 
regou-se de uma nuvem o semblante do ancião. 
Quando o conde dos Arcos sahiu a farpeal-o, as 
feições do pae contrairam-se e a sua vista não se 
despregou mais da arriscada lucta. 



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180 ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 

De repente o velho soltou um grito sofifocado e 
cobriu os olhos, apertando depois as mãos na ca- 
beça. Os seus receios haviam-se reaUsado. Cavallo 
e cavalleiro rolavam na arena, e a esperança pen- 
dia de um fio ténue! Cortou-lh'o rapidamente a 
morte, e o marquez, perdido o filho, Juz da sua 
ahna e ufania de suas cas, não proferiu uma pala- 
vra, não derramou uma lagrima; mas os joelhos 
fugiam-lhe trémulos, e a elevada estatura inclinou- 
se vergando ao peso da magua excruciante. 

Volveu, porém, em si decorridos momentos. A 
livida pallidez do rosto tingiu-se de vermelhidão fe- 
bril subitamente. Os cabellos desgrenhados e hir- 
tos revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor 
frio como as sedas da juba de um leão irritado. 
Nos olhos amortecidos faiscou instantâneo, mas ter- 
rivel, o sombrio clarão de uma cólera, em que to- 
das as anciãs insofridas da vingança se accumula- 
vam. 

Em um Ímpeto a presença reassumiu as propor- 
ções magestosas e erectas como se lhe corresse nas 
veias o sangue do mancebo que perdera. Levando 
por acto instinctivo a mão ao lado, para arrancar da 
espada, meneou tristemente a cabeça. A sua boa 
espada, cingira-a elle próprio ao filho n'este dia que 
se convertera para a sua casa em dia de eterno 
luto! 

Sem querer ouvir nada, desceu os dcgi-aus 



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ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATHIRA 181 

amphiteatro, seguro e resoluto como se as neves de 
setenta annos lhe não branqueassem a cabeça. 

— Sua magestade ordena ao marquez de Ma- 
rialva, que aguarde as suas ordens! disse um ca- 
marista detendo-o pelo braço. 

O velho fidalgo estremeceu como se acordasse 
sobresaltado, e cravou no interlocutor os olhos des- 
vairados, em que reluzia o fulgor concentrado d'um 
pensamento immutavel. Desviando depois a mão, 
que o suspendia, baixou mais dois degraus. 

— Sua magestade entende que este dia foi já 
bastante desgraçado e não quer perder n'elle dois 
vassallos... O marquez desobedece ás ordens de 
el-rei?l... 

— El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! ata- 
lhou o ancião em voz áspera, mas sumida. Aquelle 
é o corpo de meu filho! e apontava para o cadá- 
ver. «Está ali! Sua magestade pôde tudo menos 
desarmar o braço do pae, menos deshonrar os ca- 
bellos brancos do criado que o serve ha tantos an- 
nos. Deixe-me passar, e diga isto. » 

D. José vira o marquez levantar-se e percebera 
a sua resolução. Amava no eslribeiro-mór as virtu- 
des e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da 
sua bocca não ouvira senão a verdade, e a idéa de 
o perder assim era-lhe insupportavel. Apenas lhe 
constou que elle não accedia á sua vontade, fez-se 
branco, cerrou os dentes convulso, e, debruçado 



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182 ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 

para fora da tribuna, aguardou em ancioso silencio 
o desfecho da catastrophe. 

A esse tempo já o marquez pisava a praça, firme 
e intrépido como os antigos romanos diante da 
morte. Dentro do peito o seu coração chorava, mas 
os olhos áridos queimavam as lagrimas quando su- 
biam a rebentar por elles. Primeiro do que tudo 
queria a vingança. 

Por impulso instantâneo, todo o ajuntamento se 
poz de pé. Os semblantes consternados e os olhos 
arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa con- 
tensão do espirito, em que um sentido parece con-' 
centrar todos. 

Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o 
traspassa, não tem egual. O fogo, que lhe presta 
vida e forças, é a desesperação. Deixae-o ir, 
e de joelhos! Saudae a magestade do infortú- 
nio! 

O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do fi- 
lho e pousou-lhe um osculo na fronte. Desabrochou- 
lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do chão 
a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta 
de dois gumes. Passou depois a capa no braço e 
cobriu-se. Decorridos instantes estava no meio da 
praça e devorava o touro com a vista chammejante, 
provocando-o para o combate. 

Cortado de commoções tão cruéis, não lhe tremia o 
braço, e ospésarraigavam-se na arena como se um 



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ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 183 

poder occulto e superior lh'os tivesse ligado repen- 
tinamente á terra. 

Fez- se no circo um silencio gélido, tremendo e 
tão profundo, que poderiam ouvir-se até as pulsa- 
ções do coração do marquez se n'aqueUa alma de 
bronze o coração valesse mais do que a vontade. 

O touro arremette contra elle... Uma e muitas 
vezes o investe cego e irado, mas a destreza do mar- 
quez esquiva sempre a pancada. 

Os ilhaes da fera arfam de fadiga, a espuma fran- 
ja-lhe a bocca, as pernas vergam e resvalam, e os 
olhos amortecem de cansaço. O ancião zomba da 
sua fúria. Calculando as distancias, frustra-lhe to- 
dos os golpes sem recuar um passo. 

O combate demora-se. 

A vida dos espectadores resume-se nos olhos. 

Nenhum ousa desviar a vista de cima da praça. 

A immensidade da catastrophe immobilisa todos. 

De súbito solta el-rei um grito e recolhe-se para 
dentro da tribuna. O velho aparava a peito desco- 
berto a marrada do touro, e quasi todos ajoelharam 
para resarem por alma do ultimo marquez de Ma- 
rialva. 

A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por 
entre as névoas, de que a pupilla tremula se emba- 
ciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espa- 
da fuzilar nos ares e logo apóz sumir-se até aos co- 
pos entre a nuca do animal. Um bramido, que atroou 



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184 ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 

O circo, e o baque do corpo agigantado na arena, 
encerraram o extremo acto do funesto drama. 

Clamores unisonos saudaram a victoria. O mar- 
quez, que tinha dobrado o joelho, com a força do 
golpe levantava-se mais branco do que um cadáver. 
Sem fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abra- 
çar-se com o corpo do filho, banhando-o de lagrimas 
e cobrindo-o de beijos. 

O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezão 
da morte, veiu apalpar o sitio aonde queria expu^ar. 
Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem vida 
ao lado do cavallo do conde dos Arcos. 

N'esse momento os espectadores olhando para a 
tribuna real estremeceram. El-rei, de pé e muito pal- 
lido, tinha junto de si o marquez de Pombal, cober- 
to de pó e com signaes de ter viajado depressa. 

Sebastião José de Carvalho voltava de propósito 
as costas á praça fallando com o monarcha. Pu- 
nia assim a barbaridade do circo. 

— Temos guerra com a Hespanha, senhor. E 
inevitável. Vossa magestade não pôde consentir que 
os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se con- 
tinuássemos n'este caminho... cedo iria Portugal a 
vela. 

— Foi a ultima corrida, marquez. A morte do 
conde dos Arcos acabou os touros reaes emquanto 
eu reinar. 

— Assim o esp^o da sabedoria de vossa ma- 



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ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA 185 

gestade. Não ha tanta gente nos seus reinos, que 
possa dar-se um homem por um touro. El-rei con- 
sente que vá em seu nome consolar o marquez de 
Marialva? 

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— Vá! E pae. Sabe o que ha de dizer-lhe... 

— O mesmo que elle me diria a mim, se Hen- 
rique estivesse como está o conde. 

El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, 
entrando na praça em toda a magestade de sua ele- 
vada estatura, levantou nos braços o velho fidalgo, 
dizendo-lhe com voz meiga e triste: 

— Senhor marquez ! Os portuguezes como vos* 
sa excellencia são para darem exemplos de grande- 
za d'abna e não para os receberem. Tinha um filho 
e Deus levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha 
declara-nos a guerra, e el-rei, meu amo e meu se- 
nhor, precisa do conselho e da espada de vossa ex- 
cellencia. 

E travando-lhe da mão, levou-o quasi nos braços 
até o metterem na carruagem. 

D. José I cumpriu a palavra dada ao seu minis- 
tro. No seu reinado nunca mais se picaram touros 
reaes em Salvaterra. 



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